Feito água

"Acordei hoje muito cedo, num repente embrulhado, e ergui-me devagar da cama, sob o estrangulamento de um tédio incompreensível. Nenhum sonho o havia causado; nenhuma realidade o poderia ter feito. Era um tédio absoluto e completo, mas fundado em qualquer coisa. No fundo obscuro da minha alma, invisíveis, forças desconhecidas travavam uma batalha em que meu ser era o solo, e todo eu tremia do embate incógnito. Uma náusea física da vida inteira nasceu com o meu despertar. Um horror a ter que viver ergueu-se comigo da cama. Tudo me pareceu oco e tive a impressão fria de que não há solução para problema algum."

Este tédio senti dia desses entrando em minha alma, feito água de chuva quando infiltra calma e lentamente em um solo arenoso e seco depois de longa estiagem. O motivo não sei, mas foi se acumulando lentamente que finalmente transbordei... E como o tédio ainda está por aqui, cobrindo tudo, vou ficando largo em sentimentos sempre doloridos. Tento entender o que ocorre(u), mas...  Então a alma, sempre incomodada por esses sentimentos diversos, vai beber em fontes mais seguras, mais sábias.

"Bem sei que é fácil formar uma teoria da fluidez das coisas e das almas compreender que somos um decurso interior de vida, imaginar que o somos é uma quantidade grande, que passamos por nós, que fomos muitos... Mas aqui há outra coisa que não o mero decurso da personalidade entre as próprias margens: há o outro absoluto, um ser alheio que foi meu. Que perdesse, com o acréscimo da idade, a imaginação, a emoção, um tipo da inteligência, um modo do sentimento — tudo isso, fazendo-me pena, me não faria pasmo. Mas a que assisto quando me leio como a um estranho? A que beira estou se me vejo no fundo?"

A partir de uma certa idade, mais da alma do que do corpo, creio, os sentimentos e pensamentos distoam um do outro e aquela vivacidade de outrora, responsável por juntar tudo e fazer caminhar as coisas, já não está tão presente assim. Quando isto ocorre, sentimentos e pensamentos nem sempre caminham lado a lado e falta força para uní-los, refletindo uma provável fuga da razão. Sobra no ar, então, uma certa e incômoda lentidão em tudo e sei, sinto, que isso é a normalidade! A partir desta constatação, não tendo desejos eternos, me estranho ao me reconhecer outro e um outro atordoado com o que ocorre em volta. Mais que isso, atordoado com a incapacidade de reação ao que ocorre em volta, o que é pior!

O tempo! O passado! Aí algures, uma voz, um canto, um perfume ocasional levantou em minha alma o pano de boca das minhas recordações... Aquilo que fui e nunca mais serei! Aquilo que tive e não tornarei a ter! Os mortos! Os mortos que me amaram na minha infância. Quando os evoco, toda a alma me esfria e eu sinto-me desterrado de corações, sozinho na noite de mim próprio, chorando como um mendigo o silêncio fechado de todas as portas.

Acalmem-se os amigos! Está tudo certo. Apenas um vento trouxe esses pensares e os coloquei aqui. Não se preocupem! O mesmo vento que os trouxe os levará, tenho certeza... Mas como bom vento, deixará sua marca.

Ah, verdade seja dita: não tenho certeza de nada...! Porque? Talvez por não saber ao certo o que quero dizer além do dito (se é que disse alguma coisa), só por isso! Talvez, e só talvez, pode ser também acúmulo de ausências...

(Um dia qualquer, out/21)

* Textos em destaque: Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego.

* Foto: Ipê Branco, estrada Prata - Campina Verde, set/21.

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