Uma lembrança querida...
"E quando a noite vai se agonizando no clarão da aurora..." nos encontramos novamente: eu e a insônia! Juntos repassamos, em uma daquelas visitas, memórias de tempos idos e que se alojam no fundo da alma... Então, sem causa aparente, recuperamos passagens de bem-querer firmemente gravadas. Vem a saudade e faz-nos companhia...
Lembrei-me hoje das noites na fazenda de meu avô. Em férias de escola, ficávamos eu, ele e minha avó, sozinhos em uma fazenda onde, à época, não havia nem energia elétrica nem muitas outras coisas, mas era muito bom... Ainda garoto tinha medo daquela solidão, que depois aprendi amar. O medo surgia quando chegava a escuridão da noite, de resto era só aventura, só alegria. A casa era boa, mas simples. Não tinha forro e, por isso, era possível se comunicar através dos diferentes cômodos. Para aplacar o meu medo, meu avô, sabiamente, providenciava toda noite uma lamparina a querosene, apenas com o pavio molhado, e a acendia para que tivesse claridade no quarto que eu dormia. E sempre, depois que estávamos todos deitados, ele iniciava uma conversa qualquer comigo para me distrair. Me lembro também que nossas conversas tinha o fundo sonoro das rezas do antes-de-dormir de minha avó. Como última lembrança de todas essas noites tenho registrado o início das conversas, sempre com diferentes assuntos. O final nunca consegui ver, dormia antes dele e a lamparina, na escassez de combustível, apagava-se, certamente logo depois de mim. E já era claro do dia, com galos cantando, quando sentia o aroma do café cuado à beira do fogão de lenha e ouvia o som do palavriado entre meus avós lá na área de serviços, próximos de uma cisterna que por vezes servia de mesa. Em um segundo, saltava da cama e, já junto deles, aguardava meu copo de leite quente recém tirado das vacas que ainda pastavam no terreiro à frente da casa após a ordenha. Uma cena inesquecível! Uma lembrança querida!
Ah... Naquele fogão de lenha, entre labaredas e estalos, eram feitas as comidas que também marcaram minha infância deste lado da família. Vovó não era uma exímia cozinheira, verdade seja dita, mas duas de suas iguarias, além do queijo fresco e do chocolate quente com canela, não saem da minha memória e do meu coração (se nele podemos mesmo guardar alguma coisa): o queijo derretido na chapa do fogão e a rapa do arroz no fundo de uma panela de ferro, velha, com exterior encarvoado de tanto enfrentar diariamente aquele fogo ardente.
Recordações... São tantas... Saudades deles!!
Porque será, pergunto, afloraram hoje essas lembranças? Talvez a resposta possa ser obtida na releitura de trechos do livro Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa. Lá pelas tantas, o personagem Riobaldo, falando de saudade, diz: "Toda saudade é uma espécie de velhice.... Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras de recente data”. Pronto, a resposta é essa: estou ficando velho! Não que seja uma descoberta nova, acho que nasci já um tanto velho e a natureza, prodigiosa, vai fazendo o resto. Mas tais repentinas lembranças de fatos e passagens de idade igual a minha, além do meu espelho, denunciam a realidade sem nenhuma dúvida. Não há como fugir! O tempo passa e a conclusão é que "envelhecer é o preço que todos temos que pagar se quisermos continuar vivos", já o disse Érico Veríssimo.
TEMPO
Num instante pouso sobre a larga mesa,
Repleta de tantas diferentes lembranças,
A caneta que tenho em mãos inseguras
Tentando traduzir em palavras o pensar.
A última empoeirada gaveta ao lado,
Chave rodada, maçaneta puxada, abro.
Revelações se apresentam prontamente
Completando o cenário do momento.
Mãos abertas sobre a mesa, por suas linhas,
Parecem deixar sempre escorrer o tempo.
Não consigo fechá-las, não detenho a fuga.
O tempo passa... O tempo está passando!
Fecho a gaveta, empunho a caneta e escrevo:
O tempo passa por nós ou nós por ele?
...FOTO...
Meus avós maternos, João e Giovanina (Nina para meu avô, Joaninha para os demais).
...FRASE...
"E quando a noite vai se agonizando no clarão da aurora..." é uma frase contida na música "Boate Azul", interpretada por Matogrosso e Mathias (entre outros), de autoria de Benedito Seviero e Aparecido Tomás de Oliveira, composta em 1963.
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