Quantos somos?
Observei, assim distraidamente, uma pétala desbotada, no meio de tantas outras pétalas, todas arrancadas, pelo vento e pelo tempo, da mini-roseira que enfeita meu jardim. Caída sobre cavacos de madeira, sabe-se lá por qual motivo, a imagem tocou-me na lembrança de um trecho de um dos muitos textos de Fernando Pessoa presentes no incrível e incomparável Livro do Desassossego:
E então veio-me alguns pensamentos que agora tento transcrever, tendo porém a certeza de que nem todo o pensado será transcrito. Isto ocorre com frequência com todos nós (imagino!), ou seja, o pensamento (e as lembranças que ele traz), mais rápido do que a ação, na maioria das vezes é também mais frágil, esfacela-se. Assim, muito do que pensamos, não conseguimos, posteriormente, reconstituir em palavras: quase como um sonho que temos e dele lembramos apenas que sonhamos, mas não o que.
Quantos somos? Foi a pergunta que despertou-me os pensamentos. Digo isso porque nossas ações são muito diferentes diante das diferentes situações cotidianamente enfrentadas, ainda que tentemos nos manter uno: em cada uma delas somos outro. Então, ocorre-me uma conclusão quase óbvia: se são, ao longo do tempo, infinitas as situações e em cada uma somos outro, somos por consequência infinitos. Que beleza! É essa infinitude, sem dúvida, que nos faz completos e renovados em nós mesmos. Em cada uma dessas sensações, sou outro, renovo-me..., disse o poeta.
Procuro então entender qual o motivo que nos faz diversos nas diversidades vividas. Talvez, muito talvez, uma explicação esteja na permanente insatisfação de sermos quem somos, de vivermos o que vivemos, de ter o que temos (ou não)... Apegados a padrões, anteriormente e difusamente estabelecidos, ficamos à procura da perfeição, do ideal (de vida, de ser, de ter), nem sempre alcançados, já que idealizados. Nas frustrações que isso pode trazer surge um ser que já reside em nós e que não conhecemos, que reaje de forma inesperada, por vezes descontente: eis o outro. E outros surgem a cada repetição dessas procuras, inclusive para fatos idênticos. Opa! Corrijo-me a tempo... Existem, claro, surgimentos de outros em nós que não tem a ver com insatisfações, ao contrário, relacinonam-se com prazeres, com alegrias, com paz e com amor. Um exemplo é quando "nos pegamos" admirando a beleza de uma flor, de uma música, de uma paisagem, de uma face, todas anteriormente desconhecidas até então. Nesses momentos o outro que aparece é capaz de admirar, de contemplar tais cenários!
Certo ou não o raciocínio, destaca-se um fato importante: a pluralidade em nós, assim como entre nós, tem um valor inestimável. Seria por demais enfadonho o viver sempre sem curvas ou desvios, no bom ou no mal sentido, valendo sim, esta ideia, para nossa própria forma de viver e ser. Assim, cada outro que se apresenta em nós pode ser fonte (e seguramente é) de aprendizado, ainda que em alguns casos, sentimos algum tipo de dor ou tristeza ao olhar esse outro. Mia Couto disse:
Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida.
A disputa de que fala o poeta, penso, é fruto da necessidade que carregamos de lutar para ser um só, um exercício de egoísmo permanente. Essa luta é vã, não tem vencendor... E creio firmemente que, quando isto (a disputa) se torna quase insuportável, fazendo-nos importantes demais como um só, que tudo em volta não está de acordo com o que pensamos, tornando-nos impacientes, sem aceitação dos outros em nós, devemos recordar o que disse o "brujo" Dom Juan a Carlos Castaneda no seu livro Viagem a Ixtlan:
...
Como é que alguém pode sentir-se tão importante quando sabe que a morte está no seu encalço? ... O que se deve fazer quando se é impaciente é virar-se para a esquerda e pedir conselhos a sua morte. Você perderá uma quantidade enorme de mesquinhez se sua morte lhe fizer um gesto, ou se a vir de relance, ou se, ao menos, tiver a sensação de que sua companheira está ali, vigiando-o. ... A morte é a única conselheira sábia que possuímos. Toda vez que sentir, como sente sempre, que está tudo errado e você está prestes a ser aniquilado, vire-se para sua morte e pergunte se é verdade. Ela lhe dirá que você está errado; que nada importa realmente, além do toque dela. Sua morte lhe dirá: "Ainda não o toquei".
Bom, para os que ainda tem medo da morte, relembro Vinícius de Moraes, no final do poema O Haver:
...
Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio
Pelo momento a vir, quando, emocionada
Ela virá me abrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada!
Ah! Eu avisei que nem todo o pensado seria escrito... Por enquanto vamos aceitar os outros que existem em nós! E os outros em volta de nós!
...Foto...
Faz. São João, Uberlândia.MG. Jan21
Muito profundo!!!!!!! Fiquei um pouco preocupada, pois ate então não havia pensado nesse lado da moeda. A dor , a tristeza , nos faz pensar , e da um frio na barriga e muitas perguntas vieram !!!!
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