Uma madrugada

É madrugada, sono se foi... No exato momento em que me acomodo confortavelmente na poltrona do meu pequeno escritório, onde estou cercado de livros, objetos e muitas lembranças, o smartphone começa tocar, aleatoriamente, a música El pescador de perlas, numa singela e bela versão de Mila Khodorkovsky. E o pensamento sai de mim, vai para não sei onde... É uma praia e me espera um barco. Apropriado. Sinto uma sensação de estar num lugar conhecido, mas que nunca estive, fazendo alguma coisa cotidiana, mas que nunca fiz! Mesmo assim, sou, nesta situação, capaz de me ver e ver o que ocorre!

O pensamento tem disso: por vezes nos escapa e faz com que possamos olhar para nós mesmos. É neste momento, raro e curto, que, saindo de nós, nos observamos sem filtro, nos enxergamos sem máscara, nos ouvimos sem acompanhamentos. Somos nós a nos ver nus! E precisamos disso, como assinalou brilhantemente José Saramago: É preciso sair da ilha para ver a ilha! O sentido dado à frase pelo poeta talvez seja aquele de que conseguimos ver melhor nossos problemas se nos colocarmos como plateia deles e não como atores. Mas a liberdade de quem escreve não tem fronteiras...

O exercício do pensamento voltado apenas para si, creio, pode também ser facilmente chamado de meditação. Mas a situação que descrevo é diferente. Meditar, segundo os dicionários, é estudar o pensamento, o conteúdo de; pensar sobre; ponderar. O que sinto não tem nada disso, é como se, por um instante, me deslocasse para uma outra vida, nunca vivida, nem imaginada, e que é despertada pela música, pela melodia, dando a impressão de ser já conhecida. Tenho sensação semelhante quando visito, por ocasião de um passeio, um trabalho, um lugar desconhecido e que me encanta de súbito. Rapidamente crio na mente situações de viver ali, mesmo não tendo relação alguma com o lugar ou com uma pessoa do lugar... Escolho, mentalmente, até a casa que gostaria de morar! Nunca entendi isso direito, mas também nunca investi neste entendimento. Apenas acontece e passa!

O sentimento desse "deslocar" a vida, mentalmente claro, é-me recorrente. E me ocorre agora um trecho do belíssimo texto de Fernando Pessoa, denominado A palavra mágica da alma, em que diz:

...
Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa vila estranha, sem saber como ali chegou; e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros durante muito tempo. Fui outro durante muito tempo – desde a nascença e a consciência –, e acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me incógnita, as ruas novas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente e natural. Foi um momento, e já passou.
...

Conheci este texto depois de ter vivido em Ouro Preto, a cidade que transforma jovens sonhadores em adultos realizadores. Mas mesmo assim, nas andanças pela cidade, nos domingos a tarde, àquela época, sempre senti algo parecido. E antes que alguém, bem intensionado, diga que são reflexos de vidas passadas, que o que sinto são "restos" de outras vidas, digo claramente que não concordo em absoluto. Até porque, como sinto e senti isto em diferentes lugares, em diferentes situações, minha memória deveria ser prodigiosa para resgatar tantas vivências. Não, não é! É talvez uma forma, isto sim, de buscar outras vidas ainda não vividas, mas que gostaria de viver nesta vida, por identificação de gosto, de beleza, de elegância, de oportunidade... Sim, nesta vida que ainda tenho e que sou capaz de registrar! Uma forma diferente de sonhar!

Sonho

Porque o sonho? Estranho o sonhar
Ser a todo tempo presente e instigante!
Não há tempo para o todo sonhado
E o pouco feito não satisfaz a alma.

Busca-se no infinito o finito viver,
Busca-se no palpável o intangível ter,
Busca-se no intraduzível o tal saber,
Busca-se no sólido a fluidez de ser.

E só se encontra o sonho do instante,
Substituído por outro logo adiante.
Um se desfaz para que o outro venha:
Assim se segue sonhando sempre.

Sem fim... Estranho... Sonhando...

... Foto...
Caminhos de Ouro Preto. Jan/2018. Foto feita em 35mm depois revelada e escaneada!

...Link da Música...
https://open.spotify.com/track/5SGNMd0u2YFwRHUdTuLO5lsi=HbbdtCcHQwi_6KjpieLFkg

...El pescador de perlas...
Ópera em 3 atos, de Georges Bizet, escrita por Michael Carré e Eugène Cormon, estreada em Paris em 1863.

Comentários

  1. Que delícia, e que prazer ler mais uma vez seus textos!!

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  2. Ah... às vezes me vejo "vivendo" em lugares que não conhecia...

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  3. Cada dia se superando mais ainda.........!!!!!!! como consegue fazer tanta coisa e ainda achar palavras pra nos confortar nos momentos que nos pegamos a olhar pra dentro de nós!!!!! Lindo!!!!!!

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  4. Sonhos....infinitas possibilidades!!! Real ou imaginário?

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  5. "Faz tempo...eu viajei para dentro de mim"

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