Solidões
Mário Quintana, um observador meticuloso do cotidiano, escreveu certa vez: "Sempre me senti isolado nessas reuniões sociais: o excesso de gente impede de ver as pessoas...". Em uma interpretação minha, bem particular, creio que tal pensamento reflete de alguma maneira uma espécie de solidão que sentia o poeta. Gosto da frase e, mesmo que não seja esta a intensão dele, é sobre solidão que atrevo-me a discorrer hoje.
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Identifico pessoalmente, de forma bem simples, duas formas de solidão. Vou dar nomes a elas, mas sem pretensão de fazer aqui um tratado sobre o assunto. É o que sinto, então escrevo.
O primeiro tipo de solidão é a solidão existencial, sob a perspectiva da nossa existência humana, podendo dividir-se em coletiva ou individual. A solidão existencial coletiva refere-se, obviamente, a um tipo de solidão que é experimentada por um grupo de pessoas, conscientemente ou não, com alguma afinidade que o isole dos demais grupos: uma comunidade quilombola, um grupo com opção sexual "diferente", uma vila antiga com certo isolamento geográfico, um país com opção religiosa ou língua "estranha" e, no limite, a humanidade como um todo. Depende, assim, da escala de observação.
E antes que "diferente" e "estranha" levante a bandeira de preconceito, o assunto é outro: a formação, expontanea ou não, de um grupo que difere de outros por uma característica peculiar e que, por esse motivo, se isola, obrigado ou não, pratica uma forma de solidão que não tem relação direta com preconceito. O preconceito pode ser até, isto sim, um dos gatilhos para a formação de grupos solitários, mas não é regra. Este é outro assunto.
Feita esta ressalva, faço mais uma. É preciso entender antecipadamente um detalhe: os reflexos da ação da solidão ocorre primeiro sobre os indivíduos de um grupo; assim sendo, na solidão coletiva esta ação é tardia.
Retornando... Em se tratando de grupo, os reflexos vão desde um inconformismo pela descoberta como grupo solitário à humilhante condição de o grupo se sentir único nessa descoberta. No primeiro extremo está o grupo que é só (sofre de solidão) por ser diferente: como, por exemplo, a solidão que devem sentir os indivíduos que pertencem a um grupo social discriminado por possuir um comportamento (ou um pensamento ou uma condição ou uma posição) que difere da grande maioria - os excluídos. É uma solidão que degenera, inimaginável! No outro extremo, o grupo vê-se humilhado quando, coletivamente, verifica sua insignificância frente a algo extremamente maior, em geral a natureza (ou pelo menos assim deveria se sentir com a sua insignificância): a terra, nosso lar, perdida no universo, é um magnífico exemplo, talvez único! Veja o que escreveu Carl Sagan, 30 anos atrás, quando foi publicada pela NASA a foto denominada "um pálido ponto azul":
Nosso planeta é uma partícula solitária na grande escuridão cósmica envolvente. Em nossa obscuridade, em toda essa vastidão, não há indício de que a ajuda virá de outro lugar para nos salvar de nós mesmos. A Terra é o único mundo conhecido até agora para abrigar vida. Não há nenhum outro lugar, pelo menos no futuro próximo, para onde nossa espécie possa migrar.
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De lá para cá, 30 anos se passaram e apesar de muito esforço, estudo, investigação e intuição, gostando ou não, pouca coisa mudou! Fomos mais longe, sim, mas a solidão, declarada lá, é a mesma que sentimos hoje! Ainda estamos só, em uma solidão existencial coletiva!
Ainda como solidão existencial, outra forma é a individual, que se autodefine. Esta ocorre no indivíduo dentro de um grupo e, ainda que aparentemente oposta, pode se sobrepor, ou seja, o indivíduo pode padecer dos dois tipos. Pode ser verificada de forma bem mais simples: já observou, nesta vastidão do grupo humano a que pertencemos, hoje ou ontem, alguém igual a você, seja na aparência física ou no intelecto? Resposta fácil: não! Então a conclusão é mais óbvia ainda: só existe você igual a você, és um ser único, és um ser essencialmente solitário! Mas não se desespere... Se estendermos nossa visão um pouco mais veremos que todas as coisas, pessoas ou não, capazes de serem individualizadas são, por extensão da ideia, únicas, solitárias individuais portanto.
Encontramos, neste caso, formas diversas para driblar, para curar, essa solidão existencial individual: por exemplo, nos juntamos a iguais. Surgem daí os sentimentos e deixamos, nesta escala, de ser só. "Nós somos cada um de nós anjos com uma asa só e só podemos voar abraçando uns aos outros", escreveu Luciano de Crescenzo (escritor italiano, 1928-2019). Ah, num certo sentido ocorre, sim, um contrassenso: se muitos iguais se juntam para voar juntos podem, ocasionalmente, gerar um grupo que se isole de outros e, desta forma, retorna-se à outra forma de solidão, a coletiva. Sem solução isso... No indivíduo, a solidão existencial individual pode causar desde sofrimentos terríveis até prazeres indescritíveis. O sofrimento é refletido na não aceitação a si mesmo como único e, por consequência, incomparável. Tanta gente se compara com tanta gente, uma bobagem... Pode parecer estranho, mas há sofrimento nesta forma de encarar a solidão, e muito! Veja o que escreveu Fernando Pessoa, no texto Diário Lúcido, in Livro do Desassossego:
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Em torno a mim há uma auréola de frieza, um halo de gelo que repele os outros. Ainda não consegui não sofrer com a minha solidão. Tão difícil é obter aquela distinção de espírito que permita ao isolamento ser um repouso sem angústia.
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Na outra via, a solidão existencial individual pode ser encarada com prazer, mas deve ser aprendida, não se nasce sabendo o valor da singularidade. Existe nela, a partir da arte por exemplo, enorme possibilidade de criação quando se exercita a solidão individual e é uma das mais belas formas de aceitação de si mesmo que conheço!
Por fim, até que enfim, a segunda e última forma de solidão que enxergo é a solidão não-existencial, que prefiro chamar de solidão de alma. Como explicar quem e de que forma se sente solidão de alma? Vou tentar... Sendo nós mesmos o abrigo das pessoas, paisagens e fatos que colecionamos ao longo de nossa existência, a solidão de alma ocorre quando, na tentativa de reencontrar, ainda que como lembranças, essas pessoas, fatos e paisagens, não as reencontramos. É quando sentimos saudade! E, embora até possa existir saudade coletiva (será?), sou da opinião que não existe sentimento mais solitário que a saudade! Isto porque cada um de nós sente saudade de alguém ou de alguma coisa de forma exclusiva e relacionada, certamente, com a forma como essa pessoa ou coisa nos tocou. E é isto que torna a saudade uma solidão, uma solidão de alma! Disse Rubem Alves:
"A saudade é um buraco na alma que se abriu quando um pedaço nos foi arrancado. No buraco da saudade mora a memória daquilo que amamos, tivemos e perdemos: presença de uma ausência".
E o que pode ser mais solitário, então, do que uma ausência?
P.S.: A diferença entre a solidão existencial individual e a solidão de alma é que a primeira pode ter cura, a segunda não!
Vem e vai
Veio me visitar a saudade
E nos encontramos a sós
E lembramos tudo de antes
E foi embora dizendo voltar.
Fiquei outra vez assim:
Sem saber porque veio
Sem saber porque lembrar
Sem saber porque vai voltar.
Como pode, vem e vai?
Saudade mora dentro de mim...
...FOTO...
NASA, Voyager 1,14.02.1990.

Gosto muito dos seus textos, adoro as citações que você traz 👏🏼👏🏼👏🏼
ResponderExcluirBom dia Júlio!!
ResponderExcluirE como migramos entre estas solidões... Ora são determinações!! Ora liberdades... E quantas vezes encenamos para cobrir algumas delas...
Adorei o texto!!
PS.. Guaxo
ExcluirObrigado compadre! Devaneios, apenas...
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