Outros paraísos
Faz algum tempo que fui reconduzido ao mundo da leitura, aquele tipo de leitura que fazemos porque queremos, que fazemos por puro prazer! Aconteceu absolutamente por acaso: entrei em um sebo e li a aba de um livro de Rubem Alves. Comprei e me encantei com a forma fácil com que ele escreve sobre temas diversos em crônicas curtas que tem sempre um objetivo certeiro. Além do seu texto, claro e cativante, me chamou atenção a maneira com que encaixa citações de tantos outros autores, fazendo um perfeito entrelaçamento de ideias, com conclusões e opiniões surpreendentes. Dentre esses autores, até então desconhecidos para mim ou que há tempos não tinha contato, destaco e me desculpo por ausências, sem ordem de importância ou preferência pessoal, Fernando Pessoa, Mário Quintana, Luiz Carlos Lisboa, Helena Kolody, Miguel Nicolelis, Gustavo Corção, Gaston Bachelard, Marcelo Gleiser, João Doederlein, Umberto Eco, Richard Dawkins, Piaget, Paulo Freire, Stephen Hawking, Guimarães Rosa, Cora Coralina, Manoel de Barros, Mia Couto, Clarice Lispector, Machado de Assis, Darcy Ribeiro, R. Aslan, Cecília Meireles, Vinícius de Morais e Friedrich Nietzsche.
Em algum lugar de um dos seus muitos livros, Rubem Alves, na crônica denominada Esquecer para lembrar, faz uma discussão com uma correlação entre as muitas camadas de tinta que podem recobrir as paredes de uma casa antiga, através de várias reformas, e uma pessoa, que ao longo da vida recebe muitos conhecimentos, por meio de seus pais, professores, líderes religiosos, tios, etc. Em grande parte esses conhecimentos são repassados direta e definitivamente, em nome de tradições milenares, familiares, culturais, educacionais, religiosas, etc, transformando-nos no que somos hoje. Tais ensinamentos, como forma de transferência de conhecimento, em sua maioria, não abrem possibilidade de discussão sobre seus conteúdos e suas validades momentâneas, já são a verdade, assim como as tintas nas paredes da casa, definitivas a cada vez. Ressalva: nem todo conhecimento se adquire como verdade absoluta, claro, mas...!
No exemplo citado pelo autor, para poder ver a casa original, foi preciso a retirada de várias camadas antigas de tinta e o que se viu no final foi lindo, pinho-de-riga. Por outro lado, para uma pessoa voltar ao "original" é necessário que se dispa de velhos conceitos, assimilados ao longo de sua trajetória, retirando-os um a um como se fossem camadas, às vezes na forma de um desaprendizado (esquecendo, sim!) ou na forma de aprendizado novo, sempre ressignificando (substituindo, sim!) os conceitos antigos, de preferência sem tomar os novos como definitivos.
Diz assim o trecho, citando Alberto Caeiro:
“Procuro despir-me do que aprendi, procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, mas um animal humano que a Natureza produziu. Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!), isso exige um estudo profundo, uma aprendizagem de desaprender [...]”.
E emenda:
"...somos aquela casa. Ao nascermos, somos pinho-de-riga puro. Mas logo começam as demãos de tinta. Cada um pinta sobre nós a cor de sua preferência. ... Até que o nosso corpo desaparece. Claro, não é com tinta e pincel, é com a fala. A tinta são as palavras. Falam, as palavras grudam no corpo, entram na carne. Ao fim, nosso corpo está coberto de tatuagens, da cabeça aos pés. Educados."
Fico fascinado e creio que esses grandes autores possuem uma sensibilidade universal, são tocados pelo mesmo dom (no sentido da facilidade de expor seus pensamentos, nada divino), nascem com uma genética comum entre eles e incomum para com os demais. Em diferentes tempos e lugares, as ideias vão e voltam entre eles, por vezes como resultado de estudos dos mais velhos pelos mais novos, às vezes por uma conexão de ideias, puramente. Talvez seja do sentimento humano essa coincidência, essa ciclicidade, e é lindo! Veja o que escreveu, em algum lugar, o incomparável Carlos Drummond de Andrade:
"O importante não é estar aqui ou ali, mas ser. E ser é uma ciência delicada, feita de pequenas observações do cotidiano, dentro e fora da gente. Se não executamos essas observações, não chegamos a ser: apenas estamos e desaparecemos."
Essas observações, a meu ver, permitem (ou deveriam) remover as diferentes camadas de tintas deixadas nas paredes durante as muitas reformas projetadas em nós. Tais remoções não alteram a nossa história, mas nos permitem desaprender aprendendo novos significados para assuntos tidos como definitivos. Às vezes sofremos neste exercício! Sim, fazer isso é certamente um sacrifício, muitas vezes dói, é demorado... Digo até que em algumas áreas do conhecimento e para algumas pessoas, dado o bloqueio implantado, é quase impossível, pois "é parte da cura o desejo de ser curado", disse Sêneca; logo, é preciso desejar. Assim, creio, se torna necessário, em algum momento de nossa vida, iniciar esse processo, quando a alma se sente incomodada e pede. Novos conhecimentos, ah, que sabor! Só é preciso estar preparado, já que "quem come do fruto do conhecimento é sempre expulso de algum paraíso", como disse Melaine Klein (psicanalista austríaca - 1882/1960). O que se espera, se ocorrer a expulsão, é que sejamos impelidos a conhecer outros paraísos!
Coloquemo-nos, portanto, no caminho das tentativas, das observações, desaprendendo velhos e aprendendo novos conceitos! Novos sentimentos! Novas experiências! Novos paraísos! Nunca é tarde e a alma agradece feliz o exercício!
TIRE
Tire as amarras mentais...
Nada coloque no lugar além de liberdade!
Tire as terríveis verdades alheias...
Tire tudo que traga dúvidas...
Nada coloque no lugar além de tempo!
Tire as crenças antigas...
Tire as cansadas certezas...
Nada coloque no lugar além de paz!
Tire as pressas ultrapassadas...
Tire as angústias antecipadas...
Nada coloque no lugar além de calma!
Tire a necessidade do perdão...
Tire o hábito estúpido de julgar...
Nada coloque no lugar além de compreensão!
Tire a cruel indiferença ao outro...
Tire o velho olhar sem ver...
Nada coloque no lugar além de amor!
...FOTO...
Fachada do Mercado Municipal de Uberlândia/MG, out/20. Observa-se uma pintura rica em detalhes (ampliar a foto) e que permaneceu recoberta por camadas de tinta durante muito tempo. Descoberta com a retirada dessas camadas, restaurada, o que era original se revelou!
Que texto leve e suave mas que nos pede um mergulho intenso em nós mesmos. O malabarismo das palavras e sua orquestração, a busca incessante do novo, o levantar das cascas... A eterna busca do que virá carregado do novo que surpreende. Obrigado Júlio por dividir essas inspirações tão essenciais para nos reconduzir a nós mesmos. Um abraço fraterno do Lucas Resende
ResponderExcluirObrigado amigo!!
ExcluirUm abraço bem apertado!!
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