Novos olhares

Como mudou meu olhar para com todas as coisas, para com tudo em volta! Para com a vida! Fico às vezes assustado quão diferente é em relação ao que já foi... Não é só o acúmulo dos anos, a experiência. É muito mais que isso. Há olhares que nem ao menos existiam e agora não saem de mim; há outros que se destilaram, ficaram mais puros, aguçados. Há também, claro, os olhares bem mais críticos, mais incomodados, mais inconformados, mais atentos que antes; alguns mais rabugentos também (idade!). Mudaram de forma geral esses olhares e acredito que a maior diferença está no fato de que hoje olho e vejo; antes, olhava sem ver! 

Como foi acontecendo? Não sei bem a resposta, mas não importa. Creio que a contemplação, o tal "tirar tempo para" foi elemento fundamental nessa mudança, juntamente com o "deixar cair". "Tirar tempo para" requer exercício profundo para fazer o pensamento viajar para horizontes distantes, onde nada incomoda a alma e onde os conceitos perdem o sentido e, às vezes, o valor. São outros paraísos! "Deixar cair" é uma expressão utilizada por uma tia, muito querida, cujo significado é simplesmente fazer serem passageiras as coisas desagradáveis, que podem crescer em momentos de tristezas, mal entendidos, que não têm, ou não devem ter, significado algum. É, em suma, não valorizar a perda de tempo, mas sim o que é essencial! 

E o essencial se oculta em locais não óbvios, como assinalado de maneira simples, mas com olhar fino, requintado mesmo, no poema de Manoel de Barros:

"Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo."

O quintal de que fala o poeta pode não ser um quintal físico, tangível... Pode ser nossa alma que, visitada e revisitada com frequência, vai nos mostrando belos quadros e o nosso olhar vai ficando diferente, mais afiado. É que, creio, a cada visita, funcionando como um filtro, nossa alma vai nos ensinando rever apenas os bons sentimentos, as boas lembranças, as experiências com sabor, as alegrias... São esses os quadros que devemos nos atentar nessas visitas, são esses que queremos lembrar sempre, não os desagradáveis, que também existem, claro. Quando retornamos de cada ida, mudamos o olhar, passamos a nos dedicar a ver detalhes, lances de delicadeza, gestos calmos, palavras doces. O novo olhar busca, finalmente, encontrar a elegância e a beleza, gerando gratidão!

Várias são as formas de visitar a alma... Ah, uma viagem, uma leitura, um abraço entre amigos, o almoço de domingo em família, um beijo do amor de nossa vida (após um jantar à luz de vela!), a metamorfose de uma larva, um desafio de matemática (divisão com vírgula ou uma integral circular tripla?), a lua cheia, um banho de chuva, o sucesso dos filhos, o pôr do sol, um gole de vinho (tinto ou branco?), a exaustão de um exercício físico (corrida ou natação?), cultivar uma flor (rosas ou orquídeas?), um passeio no parque, o vôo aleatório da borboleta (azul ou branca?), ouvir uma música (Mozart ou Milton?), pés descalços na areia da praia, um pouco de dança (Fred Astaire ou Ana Botafogo?), a nostalgia mágica do entardecer, recordar uma história, tocar um instrumento (sax ou violão?), um olhar perdido na montanha, uma certa dose de altruísmo, a admiração por um quadro (Monet ou Tarsila do Amaral?), a noite estrelada, curvas na estrada, alguns minutos de absoluto silêncio, sentir saudade, a solidão (sim!), ter um cão, etc. Cada um deve encontrar suas formas prediletas de exercitar as visitas... O olhar vai seguindo, observando, ficando atento e vai mudando! Distraídos, nos acostumamos! Torna-se um hábito ver em tudo coisas belas! Novos olhares!

Para finalizar, os olhares que detemos sobre coisas, pessoas e situações, através do "tirar tempo para" observar e do "deixar cair" o que não é essencial, são responsáveis por gerenciar e ampliar nossos sonhos, como sentenciou Mário Quintana:

"O que mata um jardim não é o abandono. O que mata um jardim é esse olhar de quem por ele passa indiferente… E assim é com a vida, você mata os sonhos que finge não ver."

Só por isso já vale a pena visitar a alma!


AINDA É

Ao deitar sobre ela olhos atentos
Ainda se vê, com certa palidez,
A original cor que um dia encantou
Todos que por instantes a observaram.

Se um pouco mais se detêm o olhar,
Calmo e curioso, se percebe ali
O mesmo veludo deslumbrante
Que sob a luz do sol nos absorveu.

Tem agora por certo, sobre a pele
E à mostra, uns veios descoloridos,
Rugas traduzindo tempos percorridos
Que ali já se passaram em abundância.

É o que se vê, se souber ver atentamente,
Quando entre belas outras tantas rosas,
Uma mais vivida e diferente se destaca
E se mostra como uma flor que ainda é.

É o que se vê, se souber ver atentamente,
Quando entre belas outras tantas faces,
Uma mais vivida e diferente se destaca
E se mostra como uma vida que ainda é!

...FOTO...
Uma rosa do meu jardim, no meu Paraíso! Out/20.

Comentários

  1. O texto, o poema estão assim ... avolumando de alma. Isso é bom, muito bom!

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  2. Vou procurar por novos olhares....mais otimistas...e fazer de tudo para me acostumar com eles!!

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  3. Parabéns, Júlio! Lindo os textos que vc escreveu,verdadeiro escritor,escreve com a alma! Continue,abraços Elane Davi

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