O tamanho de minhas asas: uma confissão

Não tenho, neste momento, ideia alguma do que escreverei hoje... Talvez pela aflição de um sentimento que tomou posse do meu ser, como se tivesse atado minhas pernas (não me deixa sair do lugar), atado meus braços (não me deixa acenar por socorro), atado minha boca (não me deixa gritar), atado minha alma (perdi o ânimo)... Mas não conseguiu atar minhas mãos nem meu cérebro (não perdi a racionalidade), por isso escrevo. Mas antes de tudo, confesso: escrevo para mim, sem egoísmo. Se alguém ler e aproveitar alguma coisa, satisfeito ficarei. Mas ao contrário, caso não consiga atingir ninguém, paciência! Como disse Carlos Drummond de Andrade: “Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida.” 

Quando digo aflição é na verdade falta de entendimento. Claro, respeito todas as formas de viver, com culturas, religiões, línguas, opções sexuais e tantas outras diferenças que possa haver. E advirto: respeito dentro das minhas condições intelectuais e de experiências. Ou seja, se em algum momento desrespeito alguma coisa ou alguém, saibam todos, não é consciente. E não se trata de defesa prévia, é só a pura verdade. E lembro-me de Fernando Pessoa: “Viver não é necessário; o que é necessário é criar.” Talvez seja isso que ainda me falta: a criação como testemunho da vida.

Caiu-me como uma bomba o pensamento estrangulador de indagar-me: "o que estou deixando no mundo que um dia deixarei?" Nenhuma premonição... Mas o fato de ter estudado muito, ainda que em boa parte na minha área de atuação, parece me obrigar a deixar legados. E quando olhei para trás e até aqui, aos sessenta e poucos anos, vi que não tenho marcas que serão reconhecidas como minhas num futuro qualquer, veio a aflição. Então me ocorre a sabedoria de Mia Couto: “As pegadas que deixamos no caminho não são apenas nossas. São também das pessoas que nos acompanharam, mesmo que por instantes.”

Justiça seja feita e a tempo: não tenho essa obrigação nem pretensão, eu sei, mas me veio a sensação de que deveria. Assim, nasceu a ideia do texto. A cobrança foi maior do que a inércia de não fazer nada. E escuto ao fundo a voz de Adélia Prado: “Não quero faca nem queijo. Quero a fome.” Talvez seja essa fome de sentido, e não de monumentos, que me move a escrever.

Começo lembrando minha infância... Foi uma infância tranquila, daquilo que consigo lembrar. Mas essa tranquilidade vem, provavelmente, do não entendimento de muita coisa que vivia naquela época, óbvio isso. Quando se ignora, não se é atingido pelos fatos. Ainda voltaremos a isso. E veio a adolescência... Bom, já começava a entender algumas coisas e a ferramenta mais utilizada para o suposto entendimento era a comparação. Por exemplo: na casa do amigo fulano não é como na minha (lá parece melhor); ou então, comigo não é assim como é com cicrano (talvez ele tenha mais sorte). Lá, nessa época, começa a construção efetiva do que sou hoje. Sim, foi lá pelas primeiras vezes que tive que voar, colocar à prova a capacidade das minhas asas. Até hoje não consigo saber qual era o tamanho exato, mas não eram do tamanho do mundo! Em outras palavras, não estava criando marcas. Eu achava que não...

Mais um pouco de tempo e fiquei adulto... Estou chegando onde quero. Já na adultez... Opa! Pulei a juventude, talvez propositalmente. Não a tive na realidade, foi impedida por tantos fatores que cai na adultez diretamente a partir da adolescência. Me faz falta até hoje não ter cumprido essa etapa. Já na adultez as asas tiveram que ficar, e ficaram, maiores. Os voos foram mais altos, claro. Drummond me consola: “Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade.” Talvez não tenha perdido tanto assim.

Percebo, enfim, que não preciso erguer monumentos para que minha existência faça sentido. Cada sorriso que provoquei, cada silêncio que respeitei, cada mão que ofereci no momento certo já são sementes lançadas ao vento. Talvez não saiba onde germinarão, mas sei que, de algum modo, florescerão em jardins que jamais verei. Como diz Mia Couto: “A vida é feita de pequenos nadas que, somados, se tornam tudo.”

O legado verdadeiro, descobri, não se escreve em pedra nem se mede em conquistas grandiosas. Ele se tece em delicadezas quase invisíveis, como o fio dourado do sol atravessando a manhã, ou o perfume da terra molhada depois da chuva. É nesse tecido discreto que minha história se entrelaça à história dos outros, deixando marcas que não se apagam, ainda que não tenham nome.

E se minhas asas não alcançaram o mundo inteiro, alcançaram, ao menos, horizontes que iluminaram meus dias. Voar não foi apenas sobre distância, mas sobre coragem: coragem de tentar, de cair e de recomeçar. Hoje, olho para trás e vejo não a ausência de feitos, mas a abundância de caminhos que me trouxeram até aqui. Como escreveu Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.”

Confesso, por fim, que o verdadeiro tamanho de minhas asas nunca esteve nas alturas que alcancei, mas na coragem de abri-las, mesmo quando o vento parecia contrário. Se não deixei marcas grandiosas, deixei o testemunho sincero de quem ousou voar — ainda que baixo, ainda que imperfeito — e, nesse voo, encontrei o sentido de existir.

Comentários

  1. Grandes Asas , que abraça a todos que estão sob eles!

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  2. Aqui no meu coração tem uma floresta inteira, que cresceu com as sementes que você jogou ao vento.

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  3. No meu coração também, Nilce. Uma floresta de afetos, de ternura. , de gratidão. Obrigada, querido Julio

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