Uma visita a mim mesmo...
Acordei magicamente sentado em um banco de jardim. A praça, desconhecida. A cidade, também. A manhã incompleta, envolta em uma neblina leve, aumentava meu espanto diante do mistério. Aquele friozinho entre a madrugada e o amanhecer parecia amplificado pela incerteza de não saber onde eu estava. Como Fernando Pessoa escreveu: "Tenho em mim todos os sonhos do mundo." E ali, perdido e assustado, sentia todos esses sonhos se esvaírem na névoa.
O tempo parecia parado quando percebi outra surpresa: uma criança, não mais que seis anos, sentada na outra ponta do banco. Havia em seu rosto algo estranhamente familiar. Cabelos negros curtos, olhos intensos, traços reconhecíveis. Quando nossos olhares se cruzaram, um arrepio percorreu minha espinha. Era eu. Eu-criança, diante de mim mesmo. O tempo congelou-se. "Sou sua primeira lembrança de você mesmo", disse ele. E eu entendi o motivo do susto.
Mais alguns segundos de eternidade se passaram até que ele continuasse. Disse que, ainda criança, eu já me perdia em pensamentos distantes. Sonhava com o futuro, com o que eu seria. "Nada, ou quase nada, virou realidade", explicou. Mas não como acusação — era uma constatação. “Sonhar não é bobagem, é treinamento”, afirmou. E me lembrei de Cecília Meireles: "Aprendi com as primaveras a me deixar cortar e a voltar sempre inteira."
Ainda mudo, apenas assenti. A criança prosseguiu: que não fui culpado pelo desencontro entre sonhos e realidade. Outros me guiavam, além do acaso sempre presente. “Alguns dirão que foi o destino. Mas você, ainda menino, não estava no comando.” Aquilo ecoou fundo em mim. Pela primeira vez compreendi que falhei menos do que imaginei. Fui levado, como tantos são, pelas correntes invisíveis da vida.
Olhei para o lado, querendo ordenar os pensamentos. E o menino desapareceu. Em seu lugar, um adolescente: rosto acneico, barba rala, cabelo lambido. Assustei-me novamente, mas antes que eu dissesse algo, ele começou a falar. Voz mais grave, tom mais confiante: “Os sonhos mudaram, mas o hábito de sonhar não. Começavam a ser moldados pela realidade que se impunha”. E senti, no fundo, que era verdade.
Ele lia meus pensamentos com exatidão. Disse que meus sonhos, mesmo adaptados, ainda eram limitados por fatores fora do meu controle. “Você ainda não estava no comando”, repetiu. E então me lembrei de uma frase de Paulo Leminski: “Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além.” Na adolescência, eu já queria ser inteiro, mas ainda era só metade de mim.
Foi então que, num gesto instintivo, escondi o rosto entre as mãos. Um refúgio contra tantas verdades expostas de mim para mim. Encolhido, o frio pareceu mais cortante. A névoa, mais densa. Como se o tempo também se encolhesse para refletir. Ali, naquela posição vulnerável, compreendi o peso de carregar sonhos desfeitos e promessas que não se cumpriram.
Quando levantei o rosto, ali estava o eu-de-meia-idade. Rosto marcado, olhos profundos. Ele não falou de imediato — apenas estendeu a mão. Peguei-a. Seu toque era quente, firme. E então, com serenidade, disse: “Não lamente o que não foi. Cada versão de nós serviu ao tempo que viveu.” Suas palavras tinham a leveza da aceitação. Não havia culpa, nem cobrança. Apenas o reconhecimento de quem sou.
Aos poucos, a neblina se dissipava. A praça parecia menos estranha. Os sons da manhã retornavam. A luz tornava tudo mais claro, não apenas ao redor, mas dentro de mim. Como se uma janela se abrisse. Como se o mundo dissesse, sutilmente: “Você está aqui, e isso basta.” Naquele instante, lembrei-me novamente de Pessoa: “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.”
Sentei-me novamente no banco. Agora sozinho, mas completo. Em mim ecoavam as vozes das minhas versões anteriores, não como fantasmas, mas como guias. Descobri, enfim, que a vida é feita não só de realizações, mas de encontros consigo mesmo. E, como escreveu Leminski, “o destino é uma questão de escolha, não de sorte.” E eu, enfim, escolhia seguir.
Foto: Ouro Preto, MG, set/22
Uauuuu gostei muito, já imaginei uma menininha sentada na ponta do banco...
ResponderExcluirReceba um abraço a cada versão sua.
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