O assunto

É uma noite normal depois de um dia de trabalho... Mas hoje o sofá me incomodou e procurei a poltrona do escritório, onde me encontro agora. Para quem gosta de expressar ideias existem dias difíceis: nada que é pensado consegue ser traduzido em uma sequência de palavras que faça algum sentido para quem as lê posteriormente. Às vezes até acontece de uma luz "solar" brilhar sobre algo, mas surge inesperadamente, entre o sol que ilumina e o assunto iluminado, uma nuvem e tudo volta a estaca zero.

Cada um que escreve, ou tenta, tem lá suas maneiras de enxergar através de nuvens. Por exemplo, buscar inspiração em alguma coisa escrita ou falada por outra pessoa, seja ela um poeta, um escritor, o senhor que limpa a praça, a senhora que se encontra toda semana na feira, etc. Alguma frase, algum poema que fique preso à nossa memória e que suscita o assunto. 

Hoje abri um antigo livro de Fernando Pessoa (Obra Poética), e encontrei ao acaso o poema a seguir (parte I), originalmente publicado no livro "O Cancioneiro":

EM BUSCA DA BELEZA

Soam vãos, dolorido epicurista,
Os versos teus, que a minha dor despreza;
Já tive a alma sem descrença presa
Desse teu sonho, que perturba a vista.

Da Perfeição segui em vã conquista,
Mas vi depressa, já sem a alma acesa,
Que a própria ideia em nós dessa beleza
Um infinito de nós mesmos dista.

Nem à nossa alma definir podemos
A Perfeição em cuja estrada a vida,
Achando-a intérmina, a chorar perdemos.

O mar tem fim, o céu talvez o tenha,
Mas não a ânsia da Coisa indefinida
Que o ser indefinida faz tamanha.

Então se desfez a nuvem e o assunto ressurgiu: a beleza. Será que existe uma definição para ela? A do dicionário me parece adequada: "qualidade, propriedade, caráter ou virtude do que é belo; manifestação característica do belo; caráter do ser ou da coisa que desperta sentimento de êxtase, admiração ou prazer através dos sentidos". Mas apesar de adequada, me parece também inatingível: o que é belo? 

Se seguir nesse raciocínio, atingiremos a máxima do ovo e da galinha e talvez seja essa justamente a beleza da beleza: o fato de que ela escapa, escorrega entre as palavras e os conceitos, resistindo a ser domada. Continuo aqui, na poltrona do escritório, com Pessoa ao lado e uma xícara já fria sobre a mesa. Não descobri o que é a beleza, mas compreendi algo — que buscá-la, ainda que em vão, é uma forma de manter acesa a chama da sensibilidade. E talvez escrever, mesmo sem rumo, seja o meu jeito de seguir nessa busca. Porque, no fim, o que nos move não é encontrar a resposta, mas continuar fazendo perguntas com esperança de que, entre uma nuvem e outra, um raio de sol nos alcance de novo.

05.05.2025



Comentários

  1. Que alegria voltar a ler o que você escreve!!

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  2. Gostei do dia dessa volta para a escrita, sempre querendo ler o que você tem a dizer.

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