Sala 60

Todo ano o fato se repete... Mesmo assim, a cada ano - a cada instante na verdade - são muitas as novidades! É preciso ter olhos que veem para vê-las e separar o essencial, como ensinou Alberto Caeiro“O essencial é saber ver. Mas isso exige um estudo profundo, uma aprendizagem de desaprender. Procuro despir-me do que aprendi, procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos...". Aquilo que elegemos como essencial constrói nossa alma!

Demorei entrar, embora sempre estivesse a caminho... Não relutei, mas me dei o tanto de tempo que me foi solicitado esperar, nem mais nem menos. A porta de entrada, verde, mais larga e menos robusta que da última vez, se abriu lentamente, como lenta foi a subida da escadaria até ela. Rangeu um pouco, verdade, e a luz, que atrevida entrou primeiro, fez se mostrarem os detalhes daquele grande cômodo... Algo como uma sala enorme, com janelas em todas as paredes,  sempre abertas, sempre permitindo a entrada da claridade; ao fundo uma outra porta, branca, fechada. Apesar do tamanho, não continha coisas demais, nem de menos: tudo no seu devido lugar, com arranjo que achei belo de se ver. A única coisa que tinha em grande quantidade eram quadros nas paredes. E percebi que a tal sala era também um pouco maior desde a última visita, que ultimamente passei a fazer com mais frequência...

Os quadros... Cada um, que passei a examinar logo que entrei, trazia uma lembrança,  uma memória... São lembranças e memórias minhas... Da minha vida! Entrei, portanto, na sala onde se hospeda minha alma, que acredito seja constituída por um mosaico, neste momento representado pelo conjunto de quadros... “Alma” é o nome do lugar onde se encontram esses pedaços perdidos de nós mesmos. São partes do nosso corpo como as pernas, os braços, o coração. Circulam em nosso sangue, estão misturadas com os nossos músculos. Quando elas aparecem o corpo se comove, ri, chora... (Rubem Alves). Assim, entendi por que neste momento rolaram lágrimas!

Ah, os quadros... Reconheci - como sempre reconheço quando faço essas visitas - com uma mistura de orgulho e melancolia, que a grande maioria deles foram colocados nas paredes por mim mesmo. Alguns, sei, nasceram comigo: representam "as belezas, as lembranças primordiais"! Em conjunto contam a minha história e estão, mais ou menos, separados por assunto, por sentimentos, como grupos.  Tem grupo das alegrias, outro das conquistas, das derrotas, das surpresas, dos aprendizados, dos amores, das amizades, dos desaprendizados e muitos outros grupos. Encontrei também - como dói - e me demorei ali, o grupo das ausências do coração...

A conclusão foi rápida: se pretendo visitar mais vezes esta sala especial, devo ir escolhendo continuamente os novos quadros para que, a cada reencontro com a "nova" sala, maior, eu possa me reconhecer nela novamente e buscar, através das paredes aumentadas, os espaços para esses novos quadros... A alma agrupa sempre os fatos de nossa vida que amamos desde sempre, que passamos a amar com o tempo, que vamos querer rever, ainda que às vezes triste! Ah, vou manter as janelas abertas, sempre, para iluminar a sala, os quadros... Para iluminar a alma!

Hoje entrei na sala dos meus 60 anos! Estou feliz com o que encontrei lá! Mas, "sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao fim. Se insistirmos em permanecer nela mais que o tempo necessário perdemos a alegria e o sentido das outras etapas que precisamos viver" (FERNANDO PESSOA). Então, que comece a caminhada para a construção da futura sala 61! Que assim seja!

O QUE CARREGO?

Marcas, cicatrizes, imagens tristes
De caminhadas longas e solitárias...

Dores profundas no peito, reflexos
Das ausências que permanecem...

Uma certa melancolia quando chega
O crepúsculo, fim indistinto de todos...

Uma forte falta de crença em deuses,
Desconhecidos e sempre temidos...

Grande crença no acaso, sábio,
definidor dos rumos da vida vivida...

Uma boa dose de paciência, resultado
Do lento e verdadeiro amadurecimento...

Uma certa quantidade de gentileza,
Fruto das diversas fontes de ternura...

Uma adoração sem medida pelo silêncio,
Onde se escuta melhor o não dizível...

Muita serenidade com o envelhecer,
Vinda certamente de desesperos inúteis...

Muita gratidão pelos que tiveram
Coragem de chegar e permanecer...

Respeito pela diferença, resultado
Do aprender a se individualizar...

Perseverança, fonte das realizações
De inúmeros sonhos idealizados...

Um grande apreço pelas diversas belezas,
Que minha alma aprendeu a ver e sentir...

Distâncias maiores que meu desejo,
Mas incapazes de finalizarem sentimentos...

Uma enorme alegria pelas amizades,
Aquelas que estão e as que são sempre...

Amores únicos, cúmplices, diferentes,
Todos meus, muito muito meus...

Orgulho por um grande encontro!

Carrego, enfim, muitas outras coisas,
Principalmente uma esperança de que,
No tempo que falta, possa encontrar
Mais e mais o que carregar!!

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Carta à minha filha: 10 anos sem Lara

Veredas

O assunto