A gente precisa se ver mais

É compreensível que o tempo mude as coisas... "Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia...", já disseram os poetas Lulu Santos/Nelson Motta. Está certo... Mas algumas coisas não obedecem a essa regra, não mudam.  São aqueles apresentadas à nossa alma no início da sua formação, lá pelos tempos da infância. E como são vigorosos os conceitos adquiridos lá... Duram a vida inteira, não tenho dúvidas. A amizade é prova incontestável deste fato.

Depois de mais de 40 anos, na média, um grupo infanto-juvenil se reuniu através da modernidade tecnológica. Faço parte desse grupo... E revendo as conversas, não são pessoas de 60 anos conversando; são, sim, jovens de 16-17 anos batendo papos de tempos idos. Claro, falamos de assuntos de agora, mas somos amigos da infância, da juventude, se curtindo depois de 40 anos de ausências. Imaginem a alegria que é... Sendo sincero ao extremo, não exercitamos a amizade nestes 40 anos que nos separaram fisicamente, não nos moldes normais.  Agora sabemos. Vivemos distantes, vivenciamos situações muito diferentes uns dos outros, por isso não fomos "exatamente" amigos nesse tempo, por vezes com longos períodos sem notícia alguma. Mas o reencontro foi fantástico. Que bando de jovens de 60 anos lindo!

Numa busca de explicar o sucesso desse grupo, com todas essas características, não encontrei outra forma de expressar a resposta além dessa: quando juntos, não conseguimos ser os adultos que somos hoje, com nossas responsabilidades atuais, compromissos, etc, mas nos tornamos momentaneamente os jovens de outrora e o que nossa alma revela não é o que somos, mas o que fomos, o que deixamos uns nos outros lá atrás e que "será eterno, porque vai durar". De novo, é claro que reacendeu a chama, mas forte mesmo é nossa juventude e suas lembranças!

Então, surgiu entre nós um fato novo: um de nós partiu! Salve Celso! E ficamos atônitos, sem chão... Não pela morte em si, o fim de todos nós, mas pelo susto por ela ter se aproximado tanto. Como adultos compreendemos, mas no grupo, reafirmo, somos jovens... O que nos une é a juventude e o que foi tão fortemente criado lá. E morte não é para jovens, não é? 

Foi então que por mera coincidência (sou fã do acaso) ocorreu o seguinte: havia comprado dias antes um livro do Affonso Romano de Sant'Anna, "Tempo da delicadeza". E a primeira crônica tem como título "A GENTE PRECISA SE VER MAIS". Não vou dizer mais nada. Vou reproduzir a crônica na íntegra e solicitar a todos, do grupo ou não, que se leve a sério o título da crônica. Talvez seja difícil um encontro com todos, afinal adultos que somos temos muitos afazeres,  responsabilidades e compromissos. Mas vamos tentar nos ver mais, dois em dois, três em três... E assim por diante! E sempre lembrando que o encontro não deve ser de adultos, mas de jovens.

A gente precisa se ver mais 

Meu amigo realizou o sonho de uma nova e bela casa e estamos, alguns casais e amigos, ali, para jantar e conversar. Matar saudades. Vivemos as peripécias dos anos 60, aquela coisa dos hippies, da utopia e da repressão. Estamos já de cabelos brancos, os que têm cabelos. De óculos. Falamos de filhos, de netos, de cachorros. São todos, de alguma maneira, bem-sucedidos em suas profissões. E, naturalmente, falamos mal do governo. Deste ou de qualquer outro. 

Alguns foram viver no estrangeiro exilados, outros foram para estudar. Mas voltamos. E, no clima amigável da conversação solta, a memória vai se aquecendo, os fatos vão ressurgindo, e, de repente, abole-se o tempo, confunde-se o ontem e o hoje. É tudo celebração. Celebração da vida vivida como um filme entrecortado que tivesse tido vários diretores. 
– Onde estava você quando mataram Kennedy? 
– Onde estava você quando Getúlio se matou? 
– Onde estava você em abril de 64? 
– Where were you when they crucified My Lord?

Quando saem todos, lá pelas duas da manhã, uma frase circula no ar: “A gente precisa se ver mais”. A gente se promete telefonar, marcar encontro, enfim, “se ver mais”. Frase banal. No entanto, penso em como é diferente quando falada entre jovens. Aliás, jovem não fala assim. Diz: “Cara, pô! Você sumiu! Vamos no apê de fulana hoje, vai rolar um agito legal lá.” Ou seja, os jovens marcam encontros para dominar o espaço. Incorporados às tribos noturnas, ficam zanzando de um bar para outro, de uma praia para outra, de um esporte para outro, conferindo espacialmente o que está ocorrendo em outros lugares. Os jovens estão desbravando corpos, e para eles o mundo é uma coisa muito ampla e distante, algo que começa depois do círculo de giz narcísico que os contém. 

Entre pessoas maduras, é diferente. Desbrava-se o conhecido. O conhecimento é re-conhecimento. Não é o espaço, o tempo é que importa. Estar juntos é como estar ao redor de uma fogueira recontando a própria vida. Isto se parece também com guerreiros meio exaustos, com meia glória apenas, contando fragmentos de uma batalha ganha e perdida. E já que os presentes viveram experiências semelhantes, um é a memória do outro, o espelho do outro. É um exercício de reunir fragmentos de vida, reachar em nós a imagem de ontem e reter um pouco o presente que se esvai. Tem, de certo modo, o sentido de carpe diem. Um carpe diem meio retroativo, olhando o retrovisor. Estamos curtindo o presente densamente, como quem toma um velho e bom vinho. 

Mas há algo mais além da constatação de que os jovens vivem mais no espaço e os mais velhos vivem mais no tempo. Para os mais idosos nessas reuniões, a própria linguagem tem outra função. Lingüisticamente, os jovens têm mais uma fala denotativa e fática, cheia de exclamações, interjeições, poucas palavras. Não é uma linguagem dissertativa prenhe de memórias, reverberando muitas conotações como proustianamente é o caso dos adultos. O jovem conversa sobre o presente e faz rápidas alusões ao futuro. O adulto conversa retroativamente. O passado cresce continuamente, ilumina o presente e delega aos outros o futuro. 

“A gente precisa se ver mais” significa também que nosso tempo está se esgotando, e reencontrar-se é, por um instante, conseguir suspender o tempo, povoar, alargar mais a própria vida. Parece que cada um tem uma mochila, uma bagagem qualquer, e que vai abrindo esse farnel de lembranças a ser servido na mesa comum. 

Essa coisa de estar juntos, vou dizer, nem precisa ser algo muito palrador, muito risonho, festivo. Existe um tipo de companheirismo silencioso, tipo cinema mudo, ou, mais pateticamente, tipo diálogo mudo de sombras. Se alguém quiser ficar calado ali, pode. 

Uma vez li que Samuel Beckett e não sei mais quem costumavam se sentar num café em Paris e ficar ali silenciosos madrugada adentro olhando, para onde? Para fora e para dentro, num silêncio estranhíssimo. Quer dizer, calados, se faziam companhia. Um animado papo silencioso. 

Lembram-se daquela canção do Paulinho da Viola em que duas pessoas se cruzam rapidamente pela rua e vão prometendo se ver, se telefonar, enfim, reunir o que a vida dispersa e fragmenta? 

Pois é, a gente precisa se ver mais.

Uberlândia, 17.02.2023.
Foto: Gerânios do Paraíso, FEV/23 (observe que as flores juntas são mais belas!)



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