O menino do quarto escuro
Acontece às vezes, mas a cada dia com mais frequência... Vou até o quarto, fechado e escuro, e abro lentamente a porta. A luz entra feito um raio e instantaneamente atinge e desperta o menino que nele reside, sempre esperto, sorridente e pronto. Ele me estica o braço e nos damos as mãos. Saímos do quarto e começamos a caminhar pela memória.
Quando acontece, nos primeiros passos relembramos o tempo quando andávamos sempre juntos, o tempo todo um fazendo companhia ao outro. Todas as peraltices eram compartilhadas, assim como um ou outro castigo que ganhávamos por tê-las cometido. Mas não havia culpa, tudo inocente. Até as repetíamos! Não havia intervalo para coisas sérias, eram tempos de pura alegria e pureza.
Ele relembra que aprendemos a ler e escrever ao mesmo tempo, que juntos cometemos os primeiros erros de matemática, alguns enganos nas datas de história e assim por diante. Juntos sonhamos viagens nas aulas de geografia! Também conhecemos a praia e o mar, a montanha, as primeiras músicas e ensaiamos as primeiras paixões platônicas, livres! Também nestes tempos, relembramos alegrias infinitas.
Continuando o caminhar e o lembrar, surgem as primeiras experiências de solidão, que não foram propriamente solidão nem para mim nem para ele, estávamos juntos. Em férias de escola, na casa de meus avós ou de meus tios - livre dos olhares dos pais -, sei hoje, foi onde experimentamos esse tipo de solidão e ele concorda... E ambos concordamos com Bachelard: "A solidão da criança é mais secreta que a solidão do adulto. É no último quartel da vida (que pode ser hoje, porque não?) que compreendemos as solidões do primeiro quartel, quando as solidões da idade provecta repercutem sobre as solidões esquecidas da infância." A nossa foi uma solidão feliz, sempre. Nada de tristeza. Solidão sinônimo de liberdade! E um pomar imenso para preencher...
Até que um dia aconteceu, relembramos ainda caminhando... Um adulto qualquer, por bem não lembro quem, nos disse que deveríamos deixar de lado a companhia um do outro pois eu, apenas eu, havia crescido e não ficava bem ter ao meu lado esse menino, sempre menino. Naquele instante, ingênuo, me senti grande, importante, quase adulto e não percebi que havia, prontamente, deixado de lado, trancado num quarto escuro, o menino que, até aquele momento, esteve sempre colado em mim. Tem algo de triste nesta passagem... Mas não houve outro jeito... O tempo exigiu!
A partir daí, caminho sozinho. Fui, assim, ser quem sou... Nas lembranças daqui em diante fico realmente só! Demorou tempo, além do desejado, para que eu descobrisse que, mesmo adulto, poderia sim, quando quisesse, ter novamente a companhia daquele menino... Bastava buscá-lo no quarto escuro. Na verdade, sempre que fosse até lá, buscaria a ingenuidade, a simplicidade, a confiança, a esperança, os sonhos, os atos sem culpa, as amizades sem limitações, iria buscar a mim mesmo ou a quem fui. E então passei a frequentar o quarto escuro da memória onde o menino, que nunca deveria ter se afastado de mim, ainda mora. É certo, perdi tempo... Às vezes por escrúpulos, vergonha, por medo, por preconceito, por limitações de inteligência, por compromissos e tantas outras coisas... Não importa por qual motivo ocorreu o atraso, agora busco sua companhia sempre. E tenho desejado muito isso! E o menino? Está sempre à minha espera...
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou.
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Esse é o menino de que falo: a criança que fui! Como disse Fernando Pessoa, agora busco "quem fui onde fiquei". E como tenho revivido as boas lembranças com esse menino! Como gosto da companhia da criança que fui!
Ah... Pressinto que a partir de agora esse menino não volta mais para o quarto escuro: desejo-o cada vez mais junto a mim! Vou iluminar o quarto. Que a memória não me traia!
Gaston Bachelard, in A poética do devaneio
Fernando Pessoa, in Navegar é preciso
Foto: eu criança, com 3 anos (ou menos um pouco), na Av Presidente Kennedy, em Urânia/SP.
Disposição permanente para ser feliz! Podemos escolher todos os dias!
ResponderExcluirConheci esse menino no final dos anos 70, inicio da década de 80. Sentíamos adultos de calças curtas, percebendo que nem tudo era possível, apesar dos nossos superpoderes. Ainda não conhecíamos a dor, a solidão, a maldição dos erros. A esperança espreitava na praça em frente ao clube dos 100. Acho que esse menino nunca ficou isolado num quarto escuro. Mesmo em silêncio, calado diante das coisas de gente grande, ele estava o tempo todo lá, com seus olhos escuros, seu coração meigo e amoroso, onde sempre coube uma porção de gente. Com o passar do tempo foi se transformando numa árvore, dessas frondosas em cuja sombra podemos sentar, descansar, fechar os olhos e sentir a brisa das almas limpas. Nesse meninão dou um beijo e um abraço de quebrar ossinhos. Ps: como trilha sonora sugiro "Até pensei" com Taiguara. Chapadão do Sul, 27 de abril de 2022. Luiz
ResponderExcluirCarríssimo Luiz... Um privilégio receber um comentário seu e também uma surpresa... Tenho certeza que a Cristina, atrevida, tem culpa no cartório... Saudades de você! Um abraço apertado, de quebrar ossinhos! Um beijo! E obrigado! Apareça!!!
ExcluirCristina agindo como um beija-flôr, que tem a nossa mais profunda afeição e simpatia. Gostei muito da tua escrita. Um cronista de sentimentos, de impressões. Em frente e para o alto. Abraços
ResponderExcluirApenas um exercício para passar o tempo: coisa de velho! Abraço.
ExcluirQue esse, esses meninos possam coexistir sempre favor da criação. Em favor do nosso deleite com essas viagens de doce beleza. Parabéns pelo texto. Suave e necessário.
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