Diálogo a sós (I)
Acendi a luz e me vi no espelho! Parei diante dele, e antes que pudesse articular o primeiro pensamento, disse-me a imagem:
- Pensativo hoje, certo? Em que pensas?
Espantado, incrédulo, não atrevi instantânea resposta, mas a imagem estava certa. Fitei-a. Ela, sem temor, desafiou-me:
- Qual seu problema hoje? Todos os dias, todos nós, temos alguns, podem parecer tolos às vezes, mas os temos. Qual o seu?
Já com a paciência incomodada, pois uma imagem minha fala comigo através do espelho e tenho a certeza de não estar louco, retruco:
- Qual é a sua, imagem? Me provoca porque? Que fiz eu a ti?
Uma risada debochada, mas não humilhante, foi a resposta da imagem... Acrescentou:
- A mim? Nada. A você...
- A mim? Repliquei imediatamente. Mas rapidamente a imagem continuou...
- Olhe para você e desta vez veja, enxergue. Tens andado adiando quase tudo em sua vida, de coisas simples até as que comprometem sua existência. Mas não altera nada na sua rotina, não cria novos hábitos, essas coisas...
Então, sem resposta pronta e sabendo que tinha razão a imagem, contemplei-a por alguns bons instantes. E quanto mais olhava mais percebia que suas palavras estavam certas. E conclui também que eu já sabia disso, foi por aí que ensaiei uma resposta...
- Está admiravelmente certa, Sra. imagem, até já tinha concluído isso. O problema é começar essa alteração de rotina, de hábitos. Não sei ao certo se sei por onde começar. Lembre-se do que disse Fernando Pessoa: Tudo em mim é a seguir outra coisa. Essa inconstância, inclusive nos sonhos, me persegue e me incomoda... Terá remédio isso, sábia imagem?
Desta vez quem me mirou demoradamente foi ela até que, depois de certo tempo, disse:
- Tem sim, dentro de você... Procure... Agora, vamos!
Fiquei atônito. Procurei entender o que queria me dizer a imagem. Me recordei, uma vez mais, de não estar louco, apenas estava conversando com minha imagem no espelho, só isso! Nada de loucura. Vasculhei a memória, os sentimentos, um pouco da minha história, e apesar de encontrar muita coisa, a resposta... Bom, esta não encontrei.
Sentindo que estava começando a me desesperar com o vazio da busca, a imagem retomou:
- Parece-me, daqui deste lugar cômodo, onde posso ver sem ser atingida, que o problema é falta de objetivos, falta de sonhos concretos. Imagino que com o passar do tempo, envelhecendo (desculpa, mas vale pra todos, inclusive pra mim), você começou a acreditar que o que já conquistou é suficiente para ir até um fim, que você não sabe quando nem qual é. E isto te acomodou, principalmente nestes últimos tempos (não sem razão!). E te digo mais: não é exclusividade sua, acontece muito, com muitas pessoas, independente da história de cada uma. Para cada caso sempre haverá motivos para o comodismo, sempre! E a resposta está dentro de cada um! Não adianta procurar em outro lugar!
Me olhou mais duramente, tomou um fôlego, e antes que eu pudesse reagir, prosseguiu:
- Está aí o seu começo, ou recomeço. Volte a ter objetivos, primeiros pequenos, como por exemplo, perder um quilo de peso nos próximos dez dias; depois, acrescente uma ida a academia pelo menos uma vez por semana; volte a planejar uma viagem ou uma reviagem (se estás com saudades de um lugar querido), e por aí siga... Saia do comodismo!
Não tive alternativa, com um gesto apenas, concordei e mentalmente concordei também iniciar o processo, breve.
Nos olhamos forçadamente e em uníssono falamos:
- Até breve, tenho certeza que vou te ver novamente!
Apaguei a luz e a imagem sumiu!!
DESENHANDO NO FUNDO DO ESPELHO
Fruto de enganos ou de amor,
nasço de minha própria contradição.
O contorno da boca,
a forma da mão, o jeito de andar
(sonhos e temores incluídos)
virão desses que me formaram.
Mas o que eu traçar no espelho
há de se armar também
segundo o meu desejo.
Terei meu par de asas
cujo vôo se levanta desses
que me dão a sombra onde eu cresço
— como, debaixo da árvore,
um caule
e sua flor.
Lya Luft, in PERDAS E GANHOS
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