Enquanto espero, abraço um pé de jambo...

Oi filha!

Mais um ano... Seis anos! E meu maior temor é ser repetitivo! Dizer-te as mesmas coisas de sempre: saudade, uma dor constante, uma incompreensão de tudo, dúvidas, ausência, etc, etc... Acho que deves estar cansada de ouvir este pai reclamar... Mas o que posso fazer? Cada um desses sentimentos, incluindo o amor para sempre, ainda estão presentes. E fico entre a esperança de um dia voltar a ver-te, a partir de crenças que já não tenho mais, e a razão, que sempre me puxa assim que tiro os pés do chão! Neste vai-e-vem, entre a esperança e a razão, continuo convivendo com sua ausência física. 

Então, "eu sugeriria que espiritualidade tem algo a ver com isto: viver em meio à presença de uma ausência. É daí que surge tudo que de belo fazemos: o amor, a poesia, os jardins, a música, as revoluções... Tudo. Fazemos essas coisas para completar esse pedaço que está faltando. Ah! Pedaço de mim, que me arrancaram... Sou espiritual por causa disto (não por causa de deuses!): do meu corpo sai uma canção, um suspiro, um desejo, uma saudade de algo que não encontro, e penso que sinto, no vento, o cheiro dessa coisa..." (Rubem Alves) E aquela esperança suspira: "Volta no vento, por favor!". E aquela razão diz: bom ter coisas para relembrar!

Desenvolvi a crença, nestes últimos tempos filha, de que criamos fantasias para amenizar dores de perdas severas, "para completar o pedaço que está faltando", não que isto seja exatamente possível! Mas criamos substituições momentâneas para aliviar a dor. Coisas assim, por exemplo: eleger um local como sagrado, uma flor como símbolo, uma poesia como testamento, uma música como hino, uma árvore como companhia. Acho que estas coisas ocorrem naturalmente, desde que deixemos os sentimentos aflorarem. De minha parte (e de sua mãe também, creio) elegi, entre tantas outras formas de lembrar sempre de você,  aquele pé de jambo lá na fazenda, no nosso paraíso. Você adorava jambo, lembra-se? E quando estive lá pela última vez, fui até ele e o abracei. Filha, confesso que rolaram lágrimas de saudades, saudades de você e do tempo que andavas por aqui! Foi um momento especial! Isso tudo é, também, mais uma demonstração da minha velhice, cada dia mais próxima, consistente e consciente. 

Com o passar dos anos, amadurecendo, tenho buscado alternativas para alegrar e tranquilizar minha alma. Fazer o que nunca fiz, sabe filha! E essas atitudes tem me trazido prazeres até então desconhecidos. Acho que a mesmice entristece. A monotonia do sempre fazer igual é terrível. Veja o que escrevi numa noite qualquer:

Trancado num silêncio solitário
Faltam palavras escritas e ditas,
Faltam motivos de risos fáceis
E a rotina, suportada a tempos,
Consome o tempo que resta!

Quando escrevi isso certamente pensava na rotina desses últimos tempos, forçada um pouco mais por uma terrível pandemia, virótica e mental, pela qual estamos passando. Filha, que tempos complicados estamos vivendo, você não faz ideia! (ou faz?) Então, minha saída foi tentar tornar a rotina, presente no meu viver, mais colorida, criar novidades, com novos afazeres e novos sentimentos! É o que estou fazendo. Acho que estou me saindo bem.

Uma dessas novas tarefas é trazer para o hoje lembranças queridas de nossas vidas, registrá-las também com palavras. Uma maneira, certamente, de realimentar a alma iluminando mais e melhor  os quadros que gostamos de rever sempre e que esperamos não desbotem. Como funciona bem, linda! Ando mais tranquilo... Aqui, agora, como escrevo para você, resgatei um momento seu. É momento de uma idade tenra, certamente você não se lembra.

Foi seu primeiro banho na natureza, literalmente. Você ainda não tinha um ano... Era um riacho pequeno, em uma pastagem que seu avô tinha alugado e lá passamos para ver como estava o gado. Fazia um calor danado e enquanto esperávamos seu avô conferir tudo, eu e sua mãe resolvemos te dar um banho. Que alegria sinto quando relembro essa sua experiência, essa sua aventura, sua alegria. Água, você sempre a amou muito! O resto da viagem foi muito calma, você dormiu plenamente, refrescada pelo banho e se alimentando no seio da sua mãe. Ah, que imagem! Ainda a tenho fresca, como fresca era a água que te banhou aquele dia! Apenas um detalhe... Quando contamos o ocorrido para seus tios, primos e outros, eu e mamãe tomamos aquela bronca: onde já se viu, banho frio?! Boa essa história, essa lembrança, não acha?
Está vendo? Bom é ter o que relembrar... Bom poder te falar tudo isso apesar das dúvidas e da saudade. E não vem com tristeza, vem com gratidão pelas oportunidades que tivemos. E foram tantas... Hoje, finalizo citando Fernando Pessoa:

Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cômodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero. 

E busco na memória os quadros que me alegram a espera! Um beijo deste saudoso pai! Te amo para sempre!!! Sempre...

Set/21



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