Crepúsculo

Quando sentei-me em uma cadeira de descanso antiga, herdada de tios queridos, e que tento conservar como relíquia (que é), os pés ainda estavam molhados do banho recém tomado depois de um dia longo e feliz. Coloquei-os confortavelmente a secar. A claridade do sol se fazia ainda presente, mas era pouca... Começara anoitecer e, como sempre neste momento, me senti velho. Mesmo assim, a memória resgatou uma frase encantadora de Fernando Pessoa, que resume com excelência a chegada da noite: "Vago pingo trêmulo, clareia pequena ao longe a primeira estrela". Uma lágrima rolou face abaixo, não de tristeza, mas de encantamento pelo crepúsculo.

Sim, tenho pelo crepúsculo um real encantamento! Além de ser um fenômeno natural e magistral, tem ele, para mim, muitos outros significados! Um deles diz respeito a idade que tenho, já crepuscular certamente... E o entendimento disso me faz mais tranquilo. Não corro da velhice pois nela vivo desde sempre, por isso sempre me chamei de velho. É que, não sei porque, carrego a tristeza do poente, uma adoração pelo antigo, o respeito pelos mais velhos; carrego a necessidade de silêncio, o preservar de memórias de outrora (por coleções, objetos ou mentalmente mesmo); carrego, hoje mais que ontem, a calma ao fazer as coisas cotidianas, a afeição pela infância, a intolerância à injustiça, a busca pela igualdade, entre tantos outros hábitos e sentimentos... Diga lá: isso é ou não é coisa de velho? Assim sou... Perdi a pressa! Como disse Quintana, sei lá onde, "basta o essencial". E me enxergo, assim, refletido no crepúsculo, embora, obviamente, não perfeito quanto... E que fique claro: não é, diga-se, sinônimo de morte, de fim, até porque se repete todos os dias... Esse repetir-se me mostra, na forma de recordação, o que fui, sou ou serei: crepúsculo sempre, até quem sabe quando...

O choro involuntário diante da beleza, encantado, tem raizes diferentes pra cada um de nós. Em mim o choro ao admirar o crepúsculo ensina... Muitas coisas!

Este odor da tarde, quando começa o cansaço dos homens.
Quando os pássaros têm uma voz mais longa, já de despedida.
Declinando o sol- esta é a notícia que a terra sente, na floresta e no arroio.

Uma nova brisa percorre a murta e resvala na relva.
E os faisões gravemente passeiam as marchetas plumas.
Docemente perdem as flores sua esperança, o perfume, a memória.
Todos os dias assim, neste caminho de auroras e crepúsculos.

E então o odor da terra é uma exalação de saudade,
Um suspiro de consolos também, e o orvalho que as plantas formam,
Com seus íntimos sumos, de silenciosa confidência
Parece igual à lágrima,
E cada folha, nas árvores, é um outro rosto humano.
(Cecília Meireles)

Ensina que somos colecionadores de saudade. E neste momento, quando me permite o tempo e a alma está em paz, a saudade de tudo se faz presente. Saudosismo puro, até do que não fiz, do que não tive! Mas, não tem pesar esse sentimento, ocorre e o sinto como sinto o ar que respiro... Verdade que por vezes dói, o que torna mais real cada uma dessas saudades que se apresenta. E aos poucos, como o crepúsculo vai escondendo o dia, vou escondendo essa dor e sobra o gozo... Que felicidade é ter o que lembrar! Que bom colecionar saudades!

Ah, os que me leem... Devem me achar maluco, mas não sou! Sou velho, lembrem-se... Mas um velho corajoso, capaz de expor seus sentimentos. E amo o crepúsculo, na natureza e em mim! Espero continuar velho mais um pouco...

O que carrego?

Marcas, cicatrizes, imagens tristes
De caminhadas longas e solitárias...

Dores profundas no peito, reflexos
Das ausências que permanecem...

Uma certa melancolia quando chega
O crepúsculo, fim indistinto de todos...

Uma forte falta de crença em deuses,
Desconhecidos e sempre temidos...

Uma boa dose de paciência, resultado
Do lento e verdadeiro amadurecimento...

Uma certa quantidade de gentileza,
Fruto das diversas fontes de ternura...

Uma adoração sem medida pelo silêncio,
Onde se escuta melhor o não dizível...

Muita serenidade com o envelhecer,
Vinda certamente de desesperos inúteis...

Muita gratidão pelos que tiveram
Coragem de chegar e permanecer...

Respeito pela diferença, resultado
Do aprender a se individualizar...

Perseverança, fonte das realizações
De inúmeros sonhos idealizados...

Um grande apreço pelas diversas belezas,
Que minha alma aprendeu a ver e sentir...

Distâncias maiores que meu desejo,
Mas incapazes de finalizarem sentimentos...

Uma enorme alegria pelas amizades,
Aquelas que estão e as que são sempre...

Amores únicos, cúmplices, diferentes,
Todos meus, muito muito meus...

Carrego, enfim, muitas outras coisas,
Principalmente uma esperança de que,
No tempo que falta, possa encontrar
Mais e mais o que carregar!!

Foto: Crepúsculo no paraíso!  Ago/21. Atenção: a foto mostra a primeira estrela!


Comentários

  1. Essa rica coletânea é além de maturidade, experiência.

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  2. E como é bom partilhar desse tempo com meu "velho" Amor....

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  3. Silêncio, perseverança, paciência, esperança, paz, serenidade... O tempo... Quanto estamos mudando...
    Gratidão pelo texto!! Parabéns!!
    Um abraço carinhoso!!

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    Respostas
    1. Ainda "unknown"; mas é um compadre... rsrs...

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  4. Que lindo, Júlio!!
    Acredito que eu também seja uma velha colecionadora de saudades... até do que não vivi 🙂

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