A régua do tempo
Esse texto "exige" uma abstração durante a leitura. "Imagine que exista vida sobre a terra, sim, mas nenhuma das formas existentes são humanas; então, para que serve o tempo? Não seria ele mais uma das invenções da humanidade?"
O amanhecer: a presença da luz!
"Devia era, logo de manhã, passar um sonho pelo rosto. É isso que impede o tempo e atrasa a ruga." (Mia Couto, escritor moçambicano, 1955-)
Em uma primeira análise, podemos considerar o tempo como construção subjetiva, humana. Esse conceito, de forma simplificada, existe desde os tempos dos filósofos gregos e foi, mais tarde, firmemente fixado por Santo Agostinho (filósofo argelino; 354-430); ele dizia: "O que é o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; porém, se quiser explicar a quem me perguntar, já não sei." Eis a conotação subjetiva. Já para Hume (filósofo britânico; 1711-1776), o tempo só existe se for considerado como registro da ligação entre um evento e outro no espaço, onde devemos usar a memória (função de experiência), que exige relação com o conhecimento, uma ação humana. Para Kant (filósofo alemão; 1724-1804), o espaço e o tempo não seriam realidades materiais, nem conteúdos possíveis de nossas representações e de nossa experiência, mas formas subjetivas de nossas representações. No meu modesto entendimento, tendo em conta diferenças nas épocas e nas influências educacionais de cada um, esses três exemplos guardam entre si a mesma conclusão: o tempo é subjetivo, ou seja, do dicionário, "pertence ao sujeito pensante e a seu íntimo", o ser humano. E são muitos outros exemplos, sempre dando ao tempo um caráter subjetivo.
O dia: presença da razão!
"Carpe diem"
Considerado como a variável independente da física clássica, o tempo passou a ter outros papéis com o advento da física moderna. Não há espaço e nem é prudente discutir aqui os diversos novos conceitos que envolvem o tempo (e o espaço) nos tempos atuais. A ideia escolhida neste momento, apenas para exemplificar essa diversidade, é exposta por Stephen Hawking (físico inglês; 1942-2018). Em uma das suas obras mais famosas, Uma breve história do tempo, existem duas considerações que são importantes no contexto aqui discutido. Num dado momento, falando sobre o conceito de "Espaço e Tempo", ele afirma: "Parece que cada observador deve ter sua própria medição de tempo, registrada pelo relógio que usa, e que relógios idênticos carregados por observadores diferentes não necessariamente estão de acordo". Isto não reforça o caráter subjetivo do tempo também nos tempos modernos? E mais adiante finaliza: "Devemos aceitar que o tempo não é completamente separado nem independente do espaço, mas se combina com ele para formar um objeto chamado espaço-tempo." Não tenho dúvidas, novamente, que o conceito sobre tempo não evoluiu tanto quanto se imagina se tomarmos os primeiros pensadores e os pensadores recentes, ainda que aqui o exemplo seja um só; talvez houve uma mudança no foco e na necessidade de se explicarem alguns novos fenômenos naturais cuja simplicidade do pensar antigo não abarcava, mas a essência permaneceu, creio.
O crepúsculo: presença da poesia!
"Resta a luz do crepúsculo, essa mistura dilacerante de beleza e tristeza. Antes que ele comece, ao fim do dia, o crepúsculo começa na gente." (Rubem Alves, teólogo, escritor; 1933-2014)
Mas ainda falta falar dos poetas... Ah, os poetas! Sensibilidade... Poderia ficar dias citando poetas que falaram do tempo e naqueles que mais gosto sobressaem a ideia de tempo também subjetivo. Logo, a subjetividade do tempo parece ser unanime. Veja o que escreveu Fernando Pessoa (poeta português; 1988-1935) em um dos textos do Livro do Desassossego: "Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fora. A das emoções sei também que é falsa: divide não o tempo, mas a sensação dele. A dos sonhos é errada; neles roçamos o tempo, uma vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro". Não era físico, era poeta, certo? Mas a noção de tempo, também para Pessoa, era subjetiva, não resta dúvida. E veja agora o que disse T.S. Eliot (poeta americano; 1888-1965), em uma frase fantástica e altamente resumidora: "E ao final de nossas longas explorações chegaremos finalmente ao lugar de onde partimos e o conheceremos então pela primeira vez". Saberia por acaso Eliot que o espaço é curvo?
A madrugada: a presença da conclusão!
"Fiz um acordo de coexistência pacífica com o tempo: nem ele me persegue, nem eu fujo dele, um dia a gente se encontra e dessa forma, vou vivendo intensamente cada momento..." (Mário Lago, poeta, ator, escritor; 1911-2002)
Quero ressalvar as muitas divisões impostas ao tempo para tornar prática a nossa convivência com algo de difícil entendimento. O dividiram em horas, dias, meses, bimestres, semestres, anos, biênios, décadas, séculos, milênios e tantas outras formas úteis. Mas não nos esqueçamos que são divisões humanas com propósitos definidos, não se busca com elas o entendimento do que se divide. Usando o ano como parâmetro, e uso como exemplo, escreveu Drummond (poeta; 1902-1987), no poema O tempo:
"Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de anos,
foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança,
fazendo a funcionar no limite da exaustão.
..."
A minha conclusão? O tempo é uma invenção humana, definitivamente. Claro que tem suas utilidades na física, na biologia e na vida prática (e em outras áreas que desconheço), mas é essencialmente subjetivo, não vou teimar com tanta gente "famosa", claro. Mas tenho uma imagem subjetiva própria do tempo: imagino o tempo como uma régua infinita, sem um princípio e sem um término, desde sempre e para sempre, com a lógica de que estes "sem começo" e "sem fim" são estados sensoriais pessoais devido a limitação da nossa existência frente ao caráter "infinito" do tempo. Esta régua é estática, contrariando a ideia de tempo dinâmico, e assim sendo, somos nós, sem dúvida, que passamos por ele, pela régua, "caminhando" paralela ou transversalmente a ela. Aparecemos e desaparecemos frente a esta régua sem que ela se altere (ela não está nem aí para nós!), ou seja, o tempo está ali e quando nascemos tomamos conhecimento dele, passamos a usufruir de suas benesses e, lá em um dia qualquer, deixaremos de ter a sensação de senti-lo... E se foi o nosso tempo! Não... Fomos nós, o tempo continua ali, imóvel. Para criarmos um passado, um presente e um futuro, cada um de nós faz marcas nessa régua: nossas memórias, nossos atos e nossos sonhos, e as colocamos em uma posição. A noção que temos de tempo passando "rápido" ou "devagar" é novamente apenas uma sensação, de prazer ou não, pois afinal, sendo a régua estática, não poderia ela ser veloz ou lenta! E mais: como explicação à noção que temos, por vezes, do tempo "parado", assim como quando nos detemos muito diante de um problema, tem-se que isto ocorra nos momentos em que estamos caminhando transversalmente à régua; ela, sempre imóvel!
Enfim, todas as noções sobre o tempo refletem aspectos sensoriais pessoais, o que explica a diferença de "velocidade" dele para duas pessoas em um mesmo evento. O tempo é estático, mas a sensação que se tem da sua presença faz a diferença! Tratemos, pois, de aproveitar a sensação que temos do tempo, principalmente daquele que nos resta até que não mais percebamos a régua! Pois, não seria ele mais uma das invenções da humanidade?"
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Quadro de Salvador Dalí, pintado em 1931, denominado "A perspectiva da memória"
Oi Júlio!! Gostei bastante de suas reflexões e dos autores que usou para fazer as articulações. A "sacada" do Drumond é sensacional: racionalização do tempo para fins de maximizar a produção, até à exaustão... A questão do tempo sempre me intrigou também. Quando estudamos deixei escrito um texto do Merleau-Ponty num quadro na porta da minha sala. Lá estava, mais de 30 anos atrás, o tempo a me assombrar... rsrs... Parabéns pelo texto. Adorei!!!
ResponderExcluirVc pode não acreditar, mas lembro desse texto... Lembrança legal!!
ExcluirAinda tenho o livro... O visível e o invisível... Vou recuperar e te envio.
ExcluirUm forte abraço!!