Envelhe(s)er

Primeiro, e rapidamente, explico: envelhecer se escreve com "c", evidentemente. O trocadilho é apenas para explorar o tema de hoje: envelhecer "sendo"! Muitos autores escreveram sobre o assunto, por observação ou por experiência própria. E é muito particular a visão da velhice sobre si mesmo ou sobre o outro. Às vezes temos o privilégio de viver as duas coisas ao mesmo tempo: envelhecer vendo outros envelhecer. Na verdade é uma situação natural, pois passamos pelas 24 horas de cada dia  igualmente, ou seja, todos envelhecemos a partir do momento em que nascemos, pelo menos cronologicamente! Se você que me lê me conheceu exatamente há 30 anos, hoje estou mais velho exatamente 30 anos... E você também! Mas o que muda então? Muda, no tempo, a forma como olhamos para a velhice, nossa e do outro, a maneira como formamos a imagem do outro, e também a nossa. Muda a forma como construímos nosso envelhe(s)er!!!


O "aspecto particular pelo qual um ser ou um objeto é percebido" é uma definição de imagem tirada do dicionário. Penso que, em se tratando de relacionamento humano, formamos, de cada um que conhecemos, uma imagem particular que reflete a relação que temos com essas pessoas. E essas pessoas fazem o mesmo sobre nós, óbvio. Essa imagem é como se fosse um mosaico composto por inúmeras fotos: cada foto mostra um aspecto diferente da visão que temos do outro em um dado instante. Não faz diferença se essa pessoa é o filho, o irmão, a mãe ou o pai ou um amigo. Acontece sempre... Só que essa imagem se forma lentamente: várias fotos em vários momentos ao longo da relação. Muitas vezes só delineamos completamente a imagem (se é que isso ocorre em algum momento) quando a relação com a pessoa já tem, no tempo, profundidades tantas que permite comparações entre o que somos e o que fomos, entre o que a pessoa é e o que ela foi, sempre pelo julgamento, certo ou errado, um do outro. Um caso especial entre tantos casos é o que vivenciamos com nossos pais. E como encontramos semelhanças e diferenças... E como é difícil, às vezes (ou sempre?), separar a imagem de pai da imagem de ser humano que a precede! E é recíproco, é difícil também, em alguns momentos, um pai ver o ser humano que existe por baixo da pele de um filho!

Entre a cama e a poltrona, estrategicamente posicionadas, não se mede distância maior do que um metro, mas os seus olhos enxergam como se fosse infinita. Os seus pés, nesse trajeto, trocam de lugar inúmeras vezes, tropeçam um sobre o outro e se arrastam. A mistura desses atos e as suas  mãos procurando, com certo desespero, um apoio para o equilíbrio e a segurança denunciam: definitivamente envelheceu! Meu pai... 

Durante a construção da imagem de meu pai, um aspecto teve relevância: fui educado de forma severa, quero dizer, obediência em função mais da autoridade, possivelmente do medo, do que do respeito, da verdadeira amizade, do afeto e do amor, que existiram em formas diferentes (sem traumas, sem críticas, apenas uma constatação; fruto de uma época, era o que ele tinha para dar). Creio não ser a melhor forma de educar e espero ter sido mais amigo, mais afetuoso e amoroso na educação dos meus filhos, mas principalmente mais cúmplice de suas vidas... Mas é necessário reforçar que hoje tenho a presente avaliação porque posso colocar os olhos no passado e ver coisas que certamente não via, não sentia, não sabia. Só nossa passagem pelo tempo nos permite isso, talvez infelizmente. Nesta minha visão, a mais importante foto que tenho de meu pai é a do empenho, do cuidado, para que eu estudasse. É o responsável por ter me feito quem sou hoje; nesse quesito foi sempre meu maior incentivador. E muitas outras fotos consigo individualizar: foi um homem trabalhador; foi um homem orgulhoso (de si, de suas origens); foi caridoso; foi amigo (não tanto de mim, fui filho); foi amante da leitura; foi apaixonado pela natureza; foi cuidadoso com os velhos da família; foi muitas outras coisas, algumas não tão nobres, mas como ser humano, nada de anormal. E me deixou um alerta, um grande exemplo, além desses: de que precisamos nos preparar para ter anos além de tantos outros, precisamos nos preparar para envelhecer. Ele não cuidou disso e, por consequência, a velhice é para ele, quase sempre, um fardo.  Muitas vezes é culpa dos outros (imagina!) ele ter 90 anos. Não aceita ter a idade que tem e tudo que advém disto, seja em relação às suas incapacidades físicas seja pela impossibilidade de voltar a ser quem foi, parecendo ter perdido o entendimento de que este fato é natural. Perdeu-se no tempo e não criou, ao longo de sua jornada, alternativas para continuar vendo a vida como um presente único e constante. Não exercitou a gratidão neste sentido. Sim, a gratidão em cada etapa constrói memórias boas, alicerces para um futuro mais tranquilo!

Duas observações... Primeiro, em alguns casos o envelhecimento vem acompanhado por doenças graves, que limitam ações e pensamentos positivos em relação à vida, isto é um fato. Mas o que expresso aqui não tem relação com esses casos, que são compreensíveis e demandam discussão diferente. Segundo, todo comportamento humano reflete uma história de vida, certo. E por vezes, as dificuldades enfrentadas, de várias naturezas, refletem-se em  comportamentos posteriores não positivos, possivelmente usados como argumentos para uma velhice difícil. Também isso demanda outro tipo de discussão.

O certo é que envelhecer "sendo" não é tarefa fácil, que acontece gratuitamente, e são diversos os caminhos (e atalhos) para transformar este período em um período tão belo quanto a juventude, mesmo que seja diferente, reflexo e consequência de viver muito. Perfeita, a natureza não misturou a juventude com a experiência, com a sabedoria, logo devemos usufruir cada etapa no próprio tempo e nos preparar para o há de vir.

Tenho dó das estrelas 
Luzindo há tanto tempo, 
Há tanto tempo... 
Tenho dó delas. 

Não haverá um cansaço 
Das coisas. 
De todas as coisas, 
Como das pernas ou de um braço? 

Um cansaço de existir, 
De ser, 
Só de ser, 
O ser triste brilhar ou sorrir... 

Não haverá, enfim, 
Para as coisas que são, 
Não a morte, mas sim 
Uma outra espécie de fim, 
Ou uma grande razão — 
Qualquer coisa assim 
Como um perdão?

Fernando Pessoa nos alerta neste poema, entendo, para o cansaço da alma e talvez tenha encontrado, poeticamente, uma resposta: não podemos nos deixar tocar pelo cansaço da alma... Aí mora a tristeza em alcançar a velhice e dela não tirar prazer algum. Nesta fase, mais que em qualquer outra, devemos visitar nossas paisagens (construídas no tempo e alojadas na alma) como se fossem outros paraísos... E de lá trazer os motivos necessários para curtir uma feliz velhice. Mas é preciso treinar desde cedo! É preciso construir este estado de coisas!

Chama: ela só é à medida que a vela deixa de ser. Uma vela apagada seria eterna, como as pedras. Mas, para ser eterna, ela teria que aceitar o triste destino de jamais iluminar a escuridão. A chama de uma vela é metáfora da vida. A vida é uma vela que se consome, iluminando... 

Bachelard foi perfeito nesta comparação quando a escreveu no livro A chama de uma vela. Ainda que a vela venha ter, por ação do tempo, tamanho menor, ela deve continuar iluminando... Por isso entristeço quando um velho, o meu inclusive, alcança o cansaço da alma e não encontra motivações e sentidos para ser feliz com a idade que alcança, para continuar iluminando. E percebo como é importante envelhe(s)er! É um alerta! E é necessário treinar desde cedo! É preciso construir!

Luz da vela

Acenda uma vela, observe sua luz!
À volta tudo se ilumina, clareando.
Dança a labareda, lembrando lâminas,
Que corta o ar que ela usa para viver!

Acenda uma vela, observe sua luz!
Dentro dela mora uma escuridão.
Arde aquele pavio que, como guia,
Mostra por onde passa a viva seiva!

A claridade brota da escuridão!
A escuridão se oculta na claridade!
Complementaridade!

*** IMAGEM ***
"Velho triste no portão da eternidade", tela de Vicent van Gogh, 1890.


Comentários

  1. Envelhecer, verbo intransitivo. Ato intrínseco de cada um de nós. Envelhecer, o corpo e a alma. Temos que cuidar de ambos.

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  2. Que texto lindo, Julio!!
    A medida que lia, várias imagens da nossa infância passeavam pela minha memória! A vida. Sendo. Envenhecendo. Agradecendo.
    E me lembrei do Gonzaguinga:
    "É a vida, é bonita
    E é bonita

    Viver
    E não ter a vergonha
    De ser feliz
    Cantar e cantar e cantar
    A beleza de ser
    Um eterno aprendiz."

    Receba meu abraço, meu Amigo de infância, meu Amigo de vida ❤❤

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