Cinco anos depois...

Nunca senti tamanha dor... É só o que posso dizer sobre a partida inesperada de Lara, minha filha, cinco anos atrás. Definitivamente, indescritível... 
Nos aniversários de sua partida sempre escrevi alguma coisa para acalmar minha alma, continuamente saudosa, na forma de uma carta dirigida a ela (como se ela pudesse receber e ler!), na verdade um ato solitário. Agora, no aniversário de cinco anos, isto se repetiu, senti a mesma necessidade. Datas, datas... Claro que falo de mim, dos meus sentimentos e falo diretamente para ela... Isto pode ser interpretado de diversas formas, inclusive, e possivelmente a mais comum, que ela possa saber que estou fazendo isso. E pode ser loucura também... Mas como poderão ver é apenas um devaneio de um pai que resolveu, desta vez, compartilhar sua saudade! A data e este ato ficarão como marco do início do blog, uma homenagem a esta linda criatura!  Mais saudades que tristezas!!!


Oi filha!

Tempo faz...

O brilhante Fernando Pessoa, que por muitas vezes fala diretamente à alma das pessoas, escreveu em algum lugar: 

"Eu sei que por algum tempo vou seguir oscilante entre a razão e o desejo. Algumas decisões são tomadas com o coração inquieto e o pensamento tomado por muitas coisas que aconteceram e que acontecem, tudo misturado. Sei também que o tempo vai ser meu amigo para essas coisas da vida. Com coragem eu sigo, nessa velocidade que eu não temo, nem mesmo de ousar ser feliz."

Ainda não sei o motivo... Resolvi mais uma vez falar com você por carta. Acho que virou mania, filha! Parece insano e um contrassenso já que minha cota de crenças há tempos esgotou-se. Mas me agrada a ideia de que posso falar com você! Estranhezas à parte, diminuíram muito as angústias e o sofrimento, talvez por isso essa (aparente?) tranquilidade, esse (aparente?) entendimento! Alguns dirão que é amadurecimento; eu digo que é endurecimento, uma ação do tempo, tornando-nos mais resistentes. Ah, o tempo... Quando o tempo ou a vida, ou melhor, quando ambos passam, força-nos entender que mudamos também, basta uma olhadinha no espelho. É revelador e é o mínimo que devemos cobrar de nós mesmos como exercício de nossa inteligência e de reflexão! Não, não passei a acreditar no que não acredito. Durante esses cinco anos, sem você fisicamente por perto, atravessei muitos labirintos, andei por vários abismos, visitei complexas espécies de loucuras. Jamais entendi o que aconteceu no plano real com você e no plano emocional comigo. Essas loucuras não foram motivos para coisas desagradáveis, mas produziram uma perturbação forte no meu intelecto, desaguando em desafios que ainda enfrento e que enfrentarei sempre, verdadeiros terremotos em desertos, lutas árduas e solitárias. Filha, vou tentar te explicar melhor...

Sabe minha linda, perdi completamente o chão quando te vi inerte, sem vida - eu que sempre me senti rocha virei areia! Como pode um filho ou filha partir assim, repentinamente, antes do pai? Nunca aceitei essa inversão na ordem natural das coisas, fiquei profundamente ferido... Esse foi, seguramente, o grande motivo do rompimento definitivo com a tradicional fé, já abalada há tempos, e com os demais assuntos relacionados com crenças, religiões, vidas passadas ou futuras, deuses... Pode ser sinônimo de ignorância profunda essa recusa, sei disso, mas abandonei severamente pensamentos e discussões a esse respeito. Se minha vida é governada por algo maior que as minhas próprias escolhas e razões, arcando com as consequências, sou governado pela natureza, mãe verdadeira de todos nós - até prova em contrário, se houver. É nisto que acredito hoje. Os postulados "pós-morte" da grande maioria das crenças parece-me, hoje, um egoísmo humano coletivo calçado na necessidade de continuidade, nada além disso. Então, com essa "rebeldia" instalada, não me restou alternativa. Filha, como me consolar se não creio mais em algo depois da morte? Ter a noção do nunca mais, sem esses confortos e esperanças de outras formas de existência dadas por tantas crenças, acredite, é tão doloroso quanto a perda em si... Nunca me consolei, nunca me curei... Aceitei! Aceitei sua partida como algo que a natureza determinou para você, devido às suas escolhas e intercorrências delas advindas... É daí que vem a tranquilidade e o entendimento. E assim você se foi, deixando aqui um pai, hoje apaziguado, mas  não menos inconformado... É uma lacuna sem tamanho! Um questionário sem respostas!

Desde que passou a habitar nossa memória, que não deixa de ser outro mundo, muitas perguntas surgiram filha! Mas as respostas não vieram, o que me deixou, e ainda me deixa, triste em muitos momentos. Mas como não sei bem porque surgem essas dúvidas, resolvi, quase sempre, não me interessar pelas respostas dadas por outros, nem busca-las pessoalmente. Com o devido respeito a todos, as poucas vezes que me atrevi, rondei fortemente as arestas da insanidade... Aos poucos procuro ter paz sobre isso, não certezas! Minha memória ainda te mantém bem viva e por isso fico feliz... Como amo essas lembranças! São recordações lindas, muito além de retratos, objetos que foram seus, são histórias de vida que construímos juntos, passo a passo! E sua filha, minha linda neta! Tudo regado por esse amor incondicional e uma alegria infinita: vieste ser minha filha e pude ser seu pai, que privilégio me deu a natureza considerando tantas variáveis! Assusta-me ainda, é certo, como tratar a saudade que sinto de você, do cheiro bom, do beijo doce e do abraço único! Não posso tê-los, mas tive! A natureza, por ação do acaso ou do divino - que não creio, mas dou possibilidade para existir - nos permitiu ter e viver essa relação... Sou então, filha, grato e feliz de verdade! Como disse Rubem Alves:

"A alegria é um sentimento manso que não depende da presença do objeto ou pessoa. Só uma memória faz sorrir. O corpo humano se alimenta também de ausências."

Imerso nesses pensamentos me vejo como a lua entre nuvens: às vezes daqui, tudo parece claro, iluminado; outras vezes essas nuvens a cobrem, escondem a luz. Então, declino do entendimento que pareço ter disso tudo! Por vezes filha, uso minha inteligência, ainda que não seja grande, e admito, ainda que por um átimo de tempo, que eu esteja errado e que em algum lugar mágico e hoje inconcebível para mim, você assista rindo as loucuras e os devaneios dos meus errantes pensamentos. Não deixa de ser uma esperança. Mas sempre recupero logo a razão e me vem à memória o que eu te disse na nossa despedida... "Se tiver algo depois de tudo, vem filha, vem tranquilizar este pai, da forma que puder..." Caso aconteça um dia, aquela inteligência que pretensamente acredito ter deverá ser capaz de permitir reaprender tudo! Juro! Mas... Se realmente nada disso existe, peço à natureza, apenas e humildemente, que me permita sonhar com você, o que não ocorreu até agora... A saudade continua imensa filha, imensa!

Recorrendo uma vez mais a Fernando Pessoa, de quem somos fãs:

"O verbo amar não se conjuga no passado. Ou se ama para sempre ou nunca se amou verdadeiramente."

Eu, filha, te amo para sempre!

Beijos!

FOTO 1: Lara, minha amada filha com um semblante de intelectual, que realmente era!
FOTO 2: Uma lua cheia num certo dia de agosto de 2020, no nosso paraíso, em Uberlândia/MG.

Comentários

  1. Poema de Natal - Vinicius de Morais

    Para isso fomos feitos
    Para lembrar e ser lembrados
    Para chorar e fazer chorar
    Para enterrar os nossos mortos
    Por isso temos braços longos para os adeuses
    Mãos para colher o que foi dado
    Dedos para cavar a terra
    Assim será a nossa vida
    Uma tarde sempre a esquecer
    Uma estrela a se apagar na treva
    Um caminho entre dois túmulos
    Por isso precisamos velar
    Falar baixo, pisar leve
    Ver a noite dormir em silêncio
    Não há muito o que dizer
    Uma canção sobre um berço
    Um verso, talvez, de amor
    Uma prece por quem se vai
    Mas que essa hora não esqueça
    E por ela os nossos corações se deixem
    Graves e simples
    Pois para isso fomos feitos
    Para a esperança no milagre
    Para a participação da poesia
    Para ver a face da morte
    De repente nunca mais esperaremos
    Hoje a noite é jovem
    Da morte, apenas nascemos
    Imensamente.

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